domingo, 3 de julho de 2011

O Despertar

Numa longa, fria e escura noite foi que abri meus olhos. Não sabia onde estava e quem eu era. Tudo era escuridão. Ao meu redor, silêncio total. Nada se movia e não havia um único espírito desgarrado pairando no ar. Coloquei a mão no peito e senti que o meu coração não batia, e foi então que me lembrei de tudo, da noite passada, das pessoas que me procuraram, da fuga, do desespero, da luta, da fraqueza, da sensação da morte que se aproxima e depois da dor, da muita dor como se estivesse novamente sendo trazido à vida, mas na verdade estava sendo arrancado da morte. Fui embalado por seus braços, senti seu abraço e seu beijo, mas não pude ir com ela. Um gosto amargo em minha boca se espalhou por todo o meu corpo e fez meu coração parado bater uma única vez. O coração de um vivo bate ininterruptamente, o de um morto para, e o de um na minha condição bate uma única vez, como se recusando a morrer, mas agora indigno de estar vivo.
            Passei a lembrar de tudo e comecei a me acostumar à minha condição de amaldiçoado. Meus olhos começaram a se acostumar à escuridão. Escutava o eco das vozes dos espíritos de pessoas que morreram ali, naquela casa. Estava deitado numa cama, fitando o teto alto sobre minha cabeça sentindo o meu frágil corpo tão forte, mas cansado e com fome. Fome era o que sentia. Mas não era uma fome comum, a sensação de estômago vazio. Não. Era algo muito mais forte e mais doloroso que me corroia por dentro. Dobrei-me sobre mim, abraçando as próprias pernas devido a dor.
            - Vejo que você já acordou – falou uma pessoa.
            Olhei ao meu redor, procurando nas sombras, quando vi algo se mostrando por entre as sombras. Era um homem, ou pelo menos havia sido, o mesmo homem que tinha me perseguido antes, em meus pesadelos. Ainda posso sentir o cheiro de seu hálito podre e quente próximo ao meu pescoço, a última sensação que tive em vida. Depois, o vazio.
            Ele veio andando em minha direção, mas seus pés quase não tocavam o chão. Senti medo, mas eu não podia correr e fugir, pois estava muito fraco e sentia aquela dor me corroer por dentro. Ele sorriu por saber o que eu sentia. Um sorriso aterrador, amaldiçoado onde o ódio e a dor transpareciam. Parou à minha frente e com uma voz baixa como um sussurro ordenou que me levantasse. Eu não consegui me levantar. Não tinha forças sequer para isso. Ele me segurou pelo pescoço. Senti as suas garras perfurando a minha pele e se cravando em minha carne. Uma sensação de queimação na parte em que ele tocava me fez urrar de dor.
            - Levante-se – ordenou.
            Meus músculos estavam rígidos como a morte, mas a sensação de medo e a lembrança da dor me fizeram mover os braços lentamente. Fui tomando uma nova consciência do corpo, conhecendo-o e aprendendo a movê-lo. Consegui me sentar na cama e olhei dentro dos olhos daquele estranho homem. Ele novamente sorria para mim e me deu sua mão. Sua mão era fria, como a mais fria das noites. Sua pele era pálida e seus cabelos negros como uma sombra.
            Levantei-me, sentindo uma sensação diferente, de uma nova e poderosa força em meu corpo, mas logo cai no chão, contorcendo-me de dor, da fome que me corroia e me levava de volta à morte. O homem-demônio me levantou e me conduziu até uma sala escura. Senti um no ar um cheiro acre antes mesmo dele abrir a porta e soube que era o cheiro de vida, o cheiro de sangue. Novamente aquela dor me invadiu e só não fui novamente ao chão por que fui segurado.
            Com a porta aberta, vi vultos de outros iguais a ele parados no meio da sala, em torno de uma mulher assustada que chorava e implorava por sua vida. Ainda hoje suas palavras estão gravadas em minha alma.
            - Não... não... por favor. Eu não quero morrer – dizia ela sem parar, com a voz embargada pelas lágrimas e soluços que lhe comprimiam o peito.
            Os outros, ao me verem, sorriram.
            Fui conduzido até a mulher, que ao me ver, levantou os olhos. Seus olhos eram lindos, de um azul profundo. Seu rosto era de uma belo e sua pele imaculada como a de um anjo em vida.
            - Não... por favor, não... – disse.
            De pé, à sua frente, eu não sabia o que fazer. Só a via à minha frente chorando, implorando por sua vida.
            - Não. Eu não posso – consegui falar.
            Ouvi risos ao meu redor.
            Os olhos dela me fitavam intensamente. Neles eu via o medo.
            - Faça – disse o homem que me dera aquela vida me amaldiçoando para todo o sempre.
            - Eu não posso – respondi.
            - Você pode e vai – falou, se aproximando da mulher, passando sua unha no pescoço dela.
            Um filete de sangue surgiu e seu cheiro invadiu o ar me dominando. Um instinto irracional de sobrevivência tomou conta de mim e avancei sobre ela, beijando-a, sugando sua vida.
            Vi, por uma breve fração de tempo, todas as suas lembranças e senti o gosto seu medo no sangue, um gosto doce e amargo.
            Eu a sugava em meu desespero, sentindo a sua vida fluindo em minhas veias mortas de meu corpo.
            Quando senti que havia roubado sua vida, larguei seu corpo, que não mais lutava. Tão logo eu a soltei, ela caiu. Seus olhos abertos sem o brilho da vida me fitavam.
            Chorei, horrorizado com o que fiz e ouvi risos às minhas costas, mas não me virei. Peguei o corpo da mulher sem vida nos braços e a levei para fora.
            Nenhum daqueles demônios me seguiu ou tentou me impedir. Cavei uma cova no meio daquele bosque escuro e depositei cuidadosamente o corpo daquela mulher a quem havia matado no fundo e depois joguei terra por cima para enterrar as minhas lembranças daquela noite. Quando terminei, ouvi novamente aqueles risos ecoando no bosque e na minha cabeça. Sabia o que tinha feito e no que havia me tornado. Chorei novamente e urrei de ódio. As vozes em minha cabeça se calaram e os risos cessaram. À minha frente vi apenas as sombras daquele bosque escuro e velho, tão sombrio quanto a amaldiçoada vida a que eu tinha sido trazido.

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