sexta-feira, 8 de julho de 2016

Carta aberta à Saraiva

Hoje estou ferido de morte. Justo eu, que tanto resisti a tantas pancadas, a tantos ferimentos, agora me entrego, pois olho para o céu desesperançado e o vejo negro.
O ferimento que eu sofri foi muito profundo e por ele escorre não o sangue pouco a pouco, mas corre aos borbotões, tirando-me uma das coisas para as quais tanto me dei, a qual, com tanto amor ajudei a construir: minha casa. O ferimento não me foi afligido de forma justa, mas me foi dado pelas costas, de forma vil, quando não estava preparado. O golpe por si só não me afetaria, não me feriria de todo, pois sou feito de ferro forte e seria capaz de logo “esquecer”, de me reerguer rapidamente e tocar a vida como sempre a toquei, mas acontece que esse golpe foi desferido contra amigos e alunos, sendo injusto para com estes, e injustiça é algo que eu não tolero.

Trabalhei durante dez anos e meio na livraria, começando na Siciliano (no tempo da franquia) e o tempo entre novembro de 2011 e outubro de 2015 já na Saraiva como responsável. Ouso dizer que ali construí uma casa feita não tijolo a tijolo, mas livro a livro, atendimento a atendimento, cliente a cliente, fazendo amigos e companheiros de leituras com quem trocava impressões e sensações das obras lidas. Ali, naquela livraria, passei a maior parte do meu tempo durante mais de uma década; ali passei meus aniversários, ali trabalhando perdi festas da família porque, devido a meu comprometimento e responsabilidade para com a empresa, não podia faltar ao trabalho; ali trabalhei doente, por vezes sem condições físicas ou psicológicas, sofrendo com dores nas costas ou no joelho, independente do dia da semana ou horário. 
Talvez alguém pode vir a me perguntar se me arrependo, hoje, de tanto ter me dado, de tanto ter amado aquele lugar. Eu respondo com convicção e leveza na alma de que não. Não me arrependo em nada do que fiz e como fiz, e o fiz não pela empresa (jamais faria o que fiz por empresa alguma), mas pela livraria, pelo que aquele ambiente significava para mim e, acima de tudo, pelos leitores que lá frequentam, pelos amigos que fiz e pelos clientes (fidelizei bem poucos clientes, diga-se de passagem, pois as pessoas que eu atendi ali, eu não as via como clientes, mas como leitores, como pessoas que buscavam algo mais que um produto para comprar, buscavam ali livros).
Amei aquele lugar e ainda amo o que ele representa para mim, mas mesmo com tanta dedicação, dali fui posto para fora no ano passado, e isso foi um golpe baixo, vil, mas eu entendi e encarei aquilo com positividade, pois estava por demais acomodado e precisava dar uma guinada na minha vida, buscar novos ares, e assim o fiz, descansando meu espírito, trabalhando em outras coisas, cultivando outros sonhos e me joguei de cabeça na carreira, com todo o amor que reside em meu peito, na carreira de professor e fomentador de literatura.
Essa carreira de professor de literatura começou pra valer, de forma mais efetiva, no segundo semestre do ano passado quando organizei, junto com minha esposa, o curso Panorama da Literatura Ocidental. O curso, um antigo projeto meu, veio a atender aos pedidos de muitos amigos, leitores e clientes da livraria, que queriam um programa sistematizado sobre alguns dos principais autores da Literatura Ocidental, um curso que pudesse responder questões do tipo “quem e por que ler?”. Quando organizei tudo, que montei o projeto, apresentei-o à Saraiva, explicando as vantagens para a empresa, que tinha muito a ganhar explorando o programa, a ideia, etc., e eu só pedi em troca a autorização de utilizar o espaço do auditório. Passei semanas e meses a fio argumentando, mostrando as vantagens, e recebi, durante muito tempo, apenas o silêncio como resposta da empresa (resposta padrão da empresa). Chegou um momento em que eu precisava de uma definição imediata, pois precisava começar as inscrições do curso e as pessoas estavam expectantes quanto às aulas. Mandei inúmeros e-mails, mais uma vez, fazendo mil e uma propostas e me predispondo até a pagar pela utilização do espaço. Sabem qual foi a resposta da Saraiva (quando eles finalmente dignaram a me responder)? Não! Isso mesmo. Não! O espaço do auditório estava vetado para mim e como justificativa deram respostas vagas.
Na época fiquei muito chateado, pensando em cancelar o curso (já havia realizado as matrículas de vários alunos/amigos), mas surgiu uma solução graças à intervenção de amigos (eu sou uma pessoa muito rica de amigos. Se me falta riqueza material, me sobram os amigos, o que vale muito mais do que ouro, diamante, carros de luxo e imóveis luxuosos). Consegui um espaço para a realização do curso e tudo transcorreu magnificamente bem.
Dai aconteceu que fui demitido e algumas coisas vieram à tona, entre elas o motivo de eu não poder ter utilizado o espaço do auditório. Explicaram-me que o veto partiu só e unicamente de uma pessoa, que disse que assim o procedeu porque “não queria confundir as coisas, o profissional com a pessoa (comigo)”! Como assim? Eu, que sempre fui profissional, que nunca confundi as coisas, que sempre agi de forma ética e responsável, confundir as coisas? Respirei fundo para não explodir, para não perder a razão e deixar que a emoção falasse mais alto. Tal pessoa, agindo agora como bom-samaritano, agora que eu não mais fazia parte da empresa, para mostrar como era justo, ético e correto, agora abria o espaço para que eu pudesse fazer ali meus cursos, não só aquele que já estava em andamento, mas futuros cursos!
Eu sou calmo por natureza e, por mais orgulhoso que seja, sei respirar fundo e aguentar certas coisas que poucas pessoas são capazes de aguentar (quem me conhece sabe muito bem disso), e aceitei as desculpas (aceitei mesmo, não guardando qualquer tipo de ressentimento).
O tempo passou, o curso foi finalizado, comecei a desenvolver mil e uma atividades, até que meus amigos/leitores/alunos (todos clientes da Livraria Saraiva, diga-se de passagem) começaram a me pedir para realizar um novo curso, com uma nova proposta, uma vez que a experiência do semestre anterior fora tão proveitosa e enriquecedora para todos. Assim, desenvolvi, novamente junto com minha esposa, o projeto, apresentei a proposta do curso para os leitores sedentos de conhecimentos literários e o mostrei à Saraiva (agora as portas da livraria estavam abertas para mim), para saber se poderia utilizar, como me fora prometido, o espaço do auditório. Aconteceram alguns contratempos, sim, mas tudo foi acertado sem maiores dificuldades, e só iniciei o curso porque recebi, agora, o aval da empresa. Reservei as datas e horários com bastante antecedência, tudo de forma meticulosa e organizada (como são minhas coisas), abrindo não um curso, dando apenas prosseguimento à turma anterior, mas dois, para que novos alunos/leitores pudessem usufruir das experiências e conhecimentos que compartilharíamos em cada aula.
Tudo correu perfeitamente bem até que ontem à tarde, quarta-feira, dia 06 de julho, recebi um estranho e-mail da parte da Saraiva “solicitando/comunicando gentilmente” o cancelamento do curso, rompendo, de forma abrupta, a parceria com a livraria. 
Li aquele e-mail duas, três, dez, quinze, um sem-número de vezes para entender o que ele dizia! Depois de entender o que ele significava, às vésperas do fim do curso (quando faltam apenas três encontros/aulas), respondi-o em busca de uma justificativa para aquela decisão insensata, injustificável. Recebi como resposta um polido e-mail falando em mudanças de planos, em “mudanças na parceria” e agradecendo a minha “compreensão”! Compreensão? Quem foi e estava sendo compreensivo? Eu é que não! Mandei imediatamente um outro e-mail chamando-os à razão, explicando a insensatez do cancelamento do curso, da proibição da utilização do espaço da livraria (que havia sido reservado desde o início do ano – e eu só o ofereci porque tinha onde realizá-lo, porque tinha o aval da empresa). Mandei, também, outro e-mail explicando não a minha situação como professor, como responsável por um curso sério, mas a dos alunos, leitores, que são clientes da livraria, que compram muitos livros ali. Sabe qual resposta recebi? O silêncio (padrão Saraiva de resposta)!
Fiquei muito, muito e muito chateado mesmo com essa punhalada, não em mim (como disse, sou feito de ferro forte e aguento a pancada), mas dada naqueles que tão assiduamente frequentaram o curso, que com tanto gosto compraram os livros (não foram poucos os livros que a Saraiva vendeu aos participantes/alunos), agindo de forma completa e inteiramente injusta (e injustiça eu não tolero).
Senti-me injustiçado, tendo recebido o mais duro, vil e covarde golpe: o espaço foi vetado para mim, justo eu que ostentava (e ostento) com tanto orgulho o fato de ter justamente construído não só aquele espaço, mas todo o ambiente que o cerca!
Senti-me expulso de casa que eu mesmo construí com tanto amor, dia a dia, atendimento a atendimento, livro a livro, e a decepção é tamanha que, se não chorei com os olhos, chorei com a alma ao ser tratado como fui e estou sendo tratado por essa empresa hipócrita, que nada tem de humana, que muito exige, que tem um belo discurso, que tem os “pilares”, que tem uma “missão”, mas que, na prática, tudo aquilo não passa de palavras, de discurso vazio.
Sinto-me tão humilhado, sendo tratado com tamanho desrespeito e falta de consideração que não me vejo mais indo àquela livraria, frequentando aquele ambiente. Logo eu, um alguém que se orgulha tanto de ter feito o que fez, de ter agido como agiu, de ter me dado como me dei! Se não respeitam e escorraçam o ex-funcionário, que respeitassem ao menos o que aquela pessoa, o que aquele profissional, o que aquele ser humano representou e representa para aquela livraria (não para a empresa, mas para a livraria).

E agora alguém pode vir a me perguntar se eu me arrependo de ter feito o que fiz como fiz e o quanto fiz. Eu respondo com a mesma e serenidade de sempre que não. Não me arrependo em nada do que fiz, como fiz e o quanto fiz pela livraria, mas me arrependo enormemente de tudo que fiz, como fiz e quanto fiz pela empresa, que sempre se mostrou, desde o início, uma empresa gerida não por livreiros, mas por pura e simplesmente por profissionais/diretores que nunca estiveram investidos do espírito livreiro, que sempre fizeram questão de desprezar o componente essencial para se ser reconhecido e prosperar nessa área de negócio: a paixão.
A Saraiva nunca foi, não é e nunca será uma verdadeira livraria que honre esse título; nunca foi, não é e nunca será uma empresa de palavra, que valorize os profissionais que merecem ser valorizados, que deram mais do que seu sangue para que ela se tornasse o que se tornou, que deram sua alma e paixão por aquilo que acreditavam (e ainda acreditam) para que a livraria fosse mais do que uma empresa e seus funcionários, mais do que simples “colaboradores”...

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