domingo, 7 de abril de 2013

Seu único crime...

Ele fechou os olhos para ver melhor. Com os olhos fechados podia ver e sentir aquilo que passava despercebido por todos. Podia sentir os cheiros que pairavam no ar, podia ouvir as palavras que as pessoas jogavam ao vento, podia sentir o toque de ausências presentes e os sabores inúmeros que ninguém tinha provado. Ficava horas a fio sentado, sorrindo enquanto desfrutava de tantas e tamanhas sensações a que só o silêncio podia proporcionar, e as pessoas que o viam naquela muda, surda e cega atitude, o julgavam e o condenavam por loucura. Não entendiam o como e o porquê daquele silêncio e o que de tão sublime tal atitude escondia que eles não podiam ver. Algumas se aproximava e procuravam ficar, juntamente com ele, num contemplativo silêncio. Elas eram cegas, e por isso, mesmo com os olhos abertos, mesmo enxergando, nada viam. Elas eram surdas, pois só escutavam os barulhos inúmeros que o mundo exterior fazia. A silenciosa e solitária atitude dele incomodava aquelas pessoas. Elas o consideravam um vagabundo, um qualquer, um alguém que nada tinha o que fazer além de incomodá-las, de atrapalhar a sua paz, de ser uma nota dissonante na música do mundo.
            Ele foi preso, acorrentado e levado para viver num mundo subterrâneo, onde ninguém mais pudesse vê-lo, onde seria esquecido, onde pagaria por todos os seus pecados, entre eles, o de corromper a paz e a harmonia do mundo daqueles que mantinham a sanidade. Lá ele ficou por muito tempo, na mesma atitude, na mesma serena e completa paz. A cela era escura, fria e cercada por um silêncio claustrofóbico, mas ele, com os olhos fechados, via, ao seu redor, luz, sentia calor e podia ouvir os sons inúmeros que o mundo lhe proporcionava. Lá, por mais que o tempo passasse, ele não o sentia, pois o tempo que regia a sua vida era outro.
            Mesmo isolado, tão longe dos olhos que enxergavam sem ver, as pessoas não o esqueciam, e sua atitude, sempre a mesma, continuava a incomodar os que mantinham a posse de suas faculdades mentais. Foi então novamente trazido à superfície da terra para ser novamente julgado e uma nova pena lhe pudesse ser imposta.
            No meio de uma praça pública, perante milhões de olhos que queriam ver aquele que tanto perturbava sem nada fazer, ficou exposto com os braços e pernas acorrentadas. Uma enxurrada de perguntas e acusações lhe foi atirada na face, mas sua única resposta foi um sorriso, que ele deu como retribuição às doces palavras que só ele, perante todo aquele vozerio, conseguia ouvir.
            Seu julgamento durou tantos dias e noites que se perderam as contas. Cada testemunha que era chamada o acusava de um novo crime do qual ele não podia se defender. O juiz tinha provas irrefutáveis para condená-lo de todos os crimes que lhe recaíam sobre os ombros e lhe perguntou, pela última vez, o que ele tinha a falar em sua legítima defesa. Ele ficou no mais completo silêncio, e limitou-se a apenas sorrir porque tinha sido, naquele momento, acometido de uma doce lembrança que lhe tomava de supetão. Entendendo aquele sorriso como um gracejo, como uma afronta a sua autoridade, o juiz, injuriado, o condenou a morte. Todos os que ouviram a sentença proferida aplaudiram, pois tinham a certeza de que tinha sido feita, finalmente, justiça naquele caso.
            No dia seguinte todo um turbilhão de pessoas estava reunido na praça para ver o espetáculo. O condenado fora trazido sobre forte escolta e conduzido ao cadafalso. Lá o juiz ainda lhe deu uma última oportunidade de dizer algo em sua defesa, mas ele permaneceu em silêncio. O laço fora passado lentamente sobre seu pescoço para que as pessoas pudessem contemplar em toda a plenitude o último ato daquele espetáculo.
            No instante final se fez um silêncio sepulcral, pois o condenado abriu os olhos, olhou para o alto e sorriu. As pessoas voltaram os olhos para onde ele olhava, e na cegueira por que eram tomadas, não vendo nada, voltaram os olhos para o chão.
            O espetáculo teve seu desfecho final com os aplausos daqueles que assistiram e uma única e solitária lágrima daquele que era executado porque cometeu o inadmissível crime de ver e sentir com clareza aquilo que era vedado aos outros.

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