domingo, 28 de abril de 2013

Crônica das Idades II



Não sei como tudo pôde e começou a acontecer, mas fato é que cresci. Cresci rápido, da noite para o dia, como se cada ano que passava sem que eu me desse conta, demorasse não mais que uma noite de sono, como se cada ano fosse como um mero passo, uma mera etapa da vida. E quando nos damos conta de que crescer é inevitável, de que precisamos passar por tais etapas, por mais que desejemos ficar indefinidamente em algumas delas, de que o tempo e os anos passam sem que nada possamos fazer, percebemos que não aproveitamos os anos, cada ano, como deveríamos e gostaríamos.
            Eu precisaria ter vivido mais, aproveitado mais, os meus cinco anos, fase maravilhosa da vida, em que se é tão inocente, em que se é tão criança, quando se é tudo tão novo, e que tudo é aprendizado, muito embora tal palavra (aprendizado) não exista em nosso vocabulário, pois não nos importamos com ela, uma vez que tudo se resume a palavra “aproveitar”. Se eu soubesse que os meus cinco anos seriam vividos só uma vez, que os cinco anos passariam tão rápido, eu os teria vivido mais, eu os teriam aproveitado bem mais...
            Eu necessitaria ter vivido mais, ter curtido mais os meus dez anos, momento da vida ímpar, em que se tem tanta ânsia de crescer, de se ser adolescente o quanto antes, em que não se quer mais ser tratado como criança, em que se julga tão adulto, mas, apesar de toda essa “maturidade”, ainda guarda-se os requícios e vícios de uma criança que ainda continua a viver em nós, que ainda não quer ir embora. Se eu tivesse me dado conta do quão maravilhosa era essa fase de transição da vida, eu a teria curtido mais, teria sido mais essa “metamorfose” que somos somente uma vez na vida, que somos somente aos dez anos...
            Eu queria ter vivido mais, ter compreendido mais os meus quinze anos, etapa da vida em que tudo é novo, em que se bate aquelas tantas inseguranças, em que por vezes faltam aquelas tantas certezas. Etapa central, visceral da vida em que a única certeza que temos é a de que nada é certo, em que nada é permanente. É aos quinze anos, talvez, em que nos damos conta pela primeira vez dessa palavra chamada, “tempo”, em que nos damos conta de que o tempo passa e que nada podemos fazer para detê-lo em sua corrida louca, desenfreada e suicida. Mas apesar de tudo, de todas as inseguranças e incertezas dessa etapa, eu teria que ter vivido mais, para ter aprendido mais, para ter errado mais, pois o aprendizado na vida se dá através dos erros, das inseguras certezas que temos somente aos quinze anos...
            Eu clamaria por viver mais, ter sido mais os meus vinte e um anos, idade na vida em que tudo são certezas, em que tudo parece tão fácil, em que basta querer para se ter, para se ser. Uma idade em que tudo é novo, mas que nada é estranho, pois se está sempre tão acostumado com o novo que nada chega a ser estranho, que nada chega a ser novidade. Ser vinte e um anos é ter a confiança em um futuro não distante, mas que pode ser vislumbrado logo ali, no dia seguinte, que pode ser tocado com a mão...
            Eu deveria viver mais o dia a dia, curtir mais a vida, sem me preocupar com o amanhã, sem me prender em demasia ao ontem, aproveitando mais o hoje, tendo a consciência de que o tempo passa, sim, e não podemos pará-lo, óbvio, de que ele escorre por entre nossos dedos, fato, mas que cada fase, momento, etapa e idade fez de mim o que sou hoje: um alguém que espera o amanhã com a insegurança dos quinze e a certeza dos vinte e um; um alguém que não tem a noção do tempo dos cinco e é a metamorfose dos dez; um alguém que é todas as idades que já teve até então; um alguém que é uma mesma árvore que vive a eterna mudança das estações não só de um ano, mas de toda uma vida...

domingo, 21 de abril de 2013

Onde o céu e o mar se fundem



Do alto daquela montanha ele via o mundo se descortinando aos seus pés. Podia ver, ao longe, na linha do horizonte, o azul do mar em contato direto com o azul do céu, os dois se fundindo, de mãos dados, com os dedos entrelaçados. O que era um e o que era o outro, olho humano algum podia distinguir. Olhou bem para o alto e viu passar uma nuvem. Há tempos não olhava para o céu e atentava para as multiformas feitas de algodão dançando um silencioso balé, sendo guiadas pelos braços do experiente bailarino chamado vento. Sorriu ao ver as formas e a dança das nuvens, pois tal olhar lhe despertou uma série de lembranças. Lembrou-se de quando era menino, do tempo livre que tinha, de como podia ficar deitado no chão com o olhar perdido no céu de um fim de tarde qualquer, de como era prazeroso ver as nuvens de modificando, adquirindo novas formas, e de como ele dava um nome a cada forma adquirida. Eram formas de animais, de paisagens, de coisas que não existiam, eram formas de lembranças...
            Tantas nuvens no céu, correndo para lá longe, para onde o céu e o mar de fundem num só abraço, e ele ali, com os pés plantados no chão. Sentiu-se triste e uma lágrima começou a brotar de seu olho. Ela escorreu pelo seu rosto deixando um sulco por onde passava. Em silêncio ele ficou com seus próprios pensamentos, até que o grito de uma águia, que voava lá no alto o despertou. Ele a contemplou e esticou a mão, chamando-a para perto de si, e ela veio bem lentamente, descrevendo círculos infindos enquanto descia, planando livre, deixando-se guiar, segura nos braços do vento. Parou perto do homem e os dois se olharam nos olhos. Ele disse que queria voar, ir lá longe, onde o céu e o mar se fundem, para onde todas as caminham, e perguntou se ela, majestosa águia, o levaria montado em suas costas. A águia abaixou a cabeça, pensou, mas disse que não poderia: ele era muito pesado.
            - Eu me livro de todas as preocupações, de todos os pensamentos, para ficar mais leve! – disse ele, desesperado, pois se ela, a rainha das aves, não poderia levá-lo, ninguém para o levaria.
            A águia, mesmo assim, disse que não poderia, por mais que desejasse. Pediu que ele a desculpasse por sua impotência, pois ela, mesmo sendo uma rainha, ainda assim era uma simples e delicada ave.
            Quando ela levantou voo, subindo lentamente descrevendo espirais no céu, ao olhar para trás, o viu lá embaixo, ajoelhado no chão, chorando copiosamente porque não lhe tinha sido dado o privilégio, o prazer, a liberdade de poder voar. Compadecida da dor do homem, ela procurou o vento que sopra forte no fim da estação do inverno, aquele que leva embora todas as pesadas nuvens de chuva, e lhe contou a dor do homem. O vento a ouviu pacientemente e disse que nada poderia fazer, pois ele, por mais forte que fosse, só conseguia carregar em seus braços as pesadas nuvens de chuva. Disse, também, que o homem poderia voar, tal qual ela, a águia, poderia dançar no céu, tal qual uma branca e leve nuvem de algodão, mas que para isso ele teria que aprender sozinho. A águia então desceu veloz, como se fosse dar um bote numa presa e levá-la para o seu ninho, para que dela pudesse alimentar seus filhotes. Desceu como um raio e disse ao homem que ele poderia voar, mas que, para isso, teria, ele mesmo, que aprender.
            - Mas eu não tenho asas – falou olhando primeiro para as asas da águia, depois para os próprios braços – e sou pesado – disse olhando para o céu e vendo como as nuvens de algodão eram leves como uma pluma dançando no céu ao sabor do vento.
            - Mas você pode, mesmo assim, sem asas e pesado como é, voar, pois sua alma e leve – disse a águia, e levantou voo deixando o homem a pensar no que dissera.
            O homem se sentou e ficou a pensar no que ouvira, vendo a águia ganhar altura até se tornar um pequenino ponto no céu e sumir ao mergulhar dentro de uma grande nuvem branca.
            - Eu sou pesado, mas mesmo assim posso voar, pois minha alma é leve – dizia ele para si mesmo, pensando e pesando cada palavra.
            Olhou para si mesmo, e só então se deu conta de que tudo fazia sentido, de que o corpo que tinha era como uma prisão, uma gaiola, que lhe mantinha a alma encarcerada. Pôs as duas mãos sobre o peito, e num gesto lento, como que abrindo a própria pele, abriu espaço para que sua alma se libertasse. Abriu os braços para o mundo e de sua garganta saiu um grito longo que ecoou por todo o céu. Ele estava livre, inteiramente livre para voar, e sua alma voou nos braços do vento por dentro das nuvens até a linha do horizonte onde o mar e o céu se fundem num só corpo, num longo e afetuoso abraço.

domingo, 14 de abril de 2013

Dança com o vento

Ela teve a ousadia, cometeu o despautério de fechar os olhos e se deixar levar pelas carícias do vento. Sentindo-se leve, percebeu que o vento a carregava nos braços, que a conduzia numa dança suave. Ela se sentia leve como uma pluma nos braços dele, que lhe sussurrava palavras de amor que um alguém tinha jogado ao longe. Ela ouvia uma música que vinha de tão longe e que lhe inundava por inteiro, que lhe vinha por todos os lados.
            Rodopiava e se sentia tonta, embriagada de felicidade ao ser conduzida naquela dança com um par tão ímpar, tão único, tão seu. Ria, e era um sorriso lindo, plenamente aberto em que sua alma podia ser vista por inteiro.
            Ela estava entregue, inteiramente entregue. Não ouvia nada do que se passava ao seu redor, não via nada. Ela era apenas aquilo: aquele momento, naquela dança. E só isso, por si só, lhe bastava. Ouvia a música e sentia o suave toque do vento segurando suas mãos, lhe fazendo rodopiar. Ela ria alto quando tropeçava em suas próprias pernas num giro desajeitado. Mas logo se reequilibrava e voltava a dançar.
            Passou horas entregue naquela dança, tantas que sequer se deu conta com o passar do tempo, pois o tempo, enquanto dançava, não lhe dizia respeito. Abria os braços, libertando-se por um curto instante e rodava em torno de si mesma, e depois e jogava novamente nos braços do vento, abraçando-o e sendo abraçada.
            O sol fez todo o seu percurso na abóbada celeste e a lua se mostrava majestosa no firmamento quando, cansada e feliz, ela sentiu que o vento a largava, que a dança tinha chegado ao fim, pois a música cessara. Sorrindo, ela jogou beijos ao vento e o agradeceu por tê-la conduzido naquela maravilhosa dança.
            Deixou-se ficar imóvel e no mais completo silêncio por alguns instantes, com os braços caídos ao longo do corpo. Seus olhos estavam fechados, mas a boca aberta num largo sorriso.
            A paz do silêncio foi quebrada quando ouviu vozes que vinham de tão longe, mas que logo foram se aproximando, aproximando e aproximando, a ponto dela senti-las toda ao seu redor. Respirou fundo uma poção de vezes, e só quando não mais aguentava ouvir aqueles ruídos, aquelas tantas vozes, foi que abriu os olhos. Ao seu redor estavam tantas pessoas que a mantinha presa num círculo tão fechado que ela começou a ter a sensação de claustrofobia. As pessoas tinham, em seu semblante, expressões de contrariedade, de recriminação. Algumas até apontavam, com dedo em riste, para ela e lhe jogavam uma série de imprecações, chamando-a de louca.
Ela, triste, abaixou a cabeça e fechou novamente os olhos, e nesse momento o vento, com seus dedos e mão suave, tocou seu queixo, levantando sua cabeça para fazê-la olhar, mesmo com os olhos fechados, bem fundo em seus olhos. Ela sorriu e se deixou novamente levar naquela tão suave a maravilhosa dança, rodando, rodando e rodando... Seus lábios se abriram num largo sorriso e seus ouvidos se fecharam para aquelas palavras que as pessoas lhe jogavam, aquelas palavras de pessoas que a julgavam uma louca só porque ela havia ousado se entregar naquela dança com o vento.

domingo, 7 de abril de 2013

Seu único crime...

Ele fechou os olhos para ver melhor. Com os olhos fechados podia ver e sentir aquilo que passava despercebido por todos. Podia sentir os cheiros que pairavam no ar, podia ouvir as palavras que as pessoas jogavam ao vento, podia sentir o toque de ausências presentes e os sabores inúmeros que ninguém tinha provado. Ficava horas a fio sentado, sorrindo enquanto desfrutava de tantas e tamanhas sensações a que só o silêncio podia proporcionar, e as pessoas que o viam naquela muda, surda e cega atitude, o julgavam e o condenavam por loucura. Não entendiam o como e o porquê daquele silêncio e o que de tão sublime tal atitude escondia que eles não podiam ver. Algumas se aproximava e procuravam ficar, juntamente com ele, num contemplativo silêncio. Elas eram cegas, e por isso, mesmo com os olhos abertos, mesmo enxergando, nada viam. Elas eram surdas, pois só escutavam os barulhos inúmeros que o mundo exterior fazia. A silenciosa e solitária atitude dele incomodava aquelas pessoas. Elas o consideravam um vagabundo, um qualquer, um alguém que nada tinha o que fazer além de incomodá-las, de atrapalhar a sua paz, de ser uma nota dissonante na música do mundo.
            Ele foi preso, acorrentado e levado para viver num mundo subterrâneo, onde ninguém mais pudesse vê-lo, onde seria esquecido, onde pagaria por todos os seus pecados, entre eles, o de corromper a paz e a harmonia do mundo daqueles que mantinham a sanidade. Lá ele ficou por muito tempo, na mesma atitude, na mesma serena e completa paz. A cela era escura, fria e cercada por um silêncio claustrofóbico, mas ele, com os olhos fechados, via, ao seu redor, luz, sentia calor e podia ouvir os sons inúmeros que o mundo lhe proporcionava. Lá, por mais que o tempo passasse, ele não o sentia, pois o tempo que regia a sua vida era outro.
            Mesmo isolado, tão longe dos olhos que enxergavam sem ver, as pessoas não o esqueciam, e sua atitude, sempre a mesma, continuava a incomodar os que mantinham a posse de suas faculdades mentais. Foi então novamente trazido à superfície da terra para ser novamente julgado e uma nova pena lhe pudesse ser imposta.
            No meio de uma praça pública, perante milhões de olhos que queriam ver aquele que tanto perturbava sem nada fazer, ficou exposto com os braços e pernas acorrentadas. Uma enxurrada de perguntas e acusações lhe foi atirada na face, mas sua única resposta foi um sorriso, que ele deu como retribuição às doces palavras que só ele, perante todo aquele vozerio, conseguia ouvir.
            Seu julgamento durou tantos dias e noites que se perderam as contas. Cada testemunha que era chamada o acusava de um novo crime do qual ele não podia se defender. O juiz tinha provas irrefutáveis para condená-lo de todos os crimes que lhe recaíam sobre os ombros e lhe perguntou, pela última vez, o que ele tinha a falar em sua legítima defesa. Ele ficou no mais completo silêncio, e limitou-se a apenas sorrir porque tinha sido, naquele momento, acometido de uma doce lembrança que lhe tomava de supetão. Entendendo aquele sorriso como um gracejo, como uma afronta a sua autoridade, o juiz, injuriado, o condenou a morte. Todos os que ouviram a sentença proferida aplaudiram, pois tinham a certeza de que tinha sido feita, finalmente, justiça naquele caso.
            No dia seguinte todo um turbilhão de pessoas estava reunido na praça para ver o espetáculo. O condenado fora trazido sobre forte escolta e conduzido ao cadafalso. Lá o juiz ainda lhe deu uma última oportunidade de dizer algo em sua defesa, mas ele permaneceu em silêncio. O laço fora passado lentamente sobre seu pescoço para que as pessoas pudessem contemplar em toda a plenitude o último ato daquele espetáculo.
            No instante final se fez um silêncio sepulcral, pois o condenado abriu os olhos, olhou para o alto e sorriu. As pessoas voltaram os olhos para onde ele olhava, e na cegueira por que eram tomadas, não vendo nada, voltaram os olhos para o chão.
            O espetáculo teve seu desfecho final com os aplausos daqueles que assistiram e uma única e solitária lágrima daquele que era executado porque cometeu o inadmissível crime de ver e sentir com clareza aquilo que era vedado aos outros.