Ele fechou os olhos para ver melhor. Com os olhos fechados
podia ver e sentir aquilo que passava despercebido por todos. Podia sentir os
cheiros que pairavam no ar, podia ouvir as palavras que as pessoas jogavam ao
vento, podia sentir o toque de ausências presentes e os sabores inúmeros que ninguém
tinha provado. Ficava horas a fio sentado, sorrindo enquanto desfrutava de
tantas e tamanhas sensações a que só o silêncio podia proporcionar, e as
pessoas que o viam naquela muda, surda e cega atitude, o julgavam e o
condenavam por loucura. Não entendiam o como e o porquê daquele silêncio e o
que de tão sublime tal atitude escondia que eles não podiam ver. Algumas se
aproximava e procuravam ficar, juntamente com ele, num contemplativo silêncio. Elas
eram cegas, e por isso, mesmo com os olhos abertos, mesmo enxergando, nada
viam. Elas eram surdas, pois só escutavam os barulhos inúmeros que o mundo
exterior fazia. A silenciosa e solitária atitude dele incomodava aquelas
pessoas. Elas o consideravam um vagabundo, um qualquer, um alguém que nada
tinha o que fazer além de incomodá-las, de atrapalhar a sua paz, de ser uma
nota dissonante na música do mundo.
Ele foi
preso, acorrentado e levado para viver num mundo subterrâneo, onde ninguém mais
pudesse vê-lo, onde seria esquecido, onde pagaria por todos os seus pecados,
entre eles, o de corromper a paz e a harmonia do mundo daqueles que mantinham a
sanidade. Lá ele ficou por muito tempo, na mesma atitude, na mesma serena e
completa paz. A cela era escura, fria e cercada por um silêncio claustrofóbico,
mas ele, com os olhos fechados, via, ao seu redor, luz, sentia calor e podia
ouvir os sons inúmeros que o mundo lhe proporcionava. Lá, por mais que o tempo
passasse, ele não o sentia, pois o tempo que regia a sua vida era outro.
Mesmo isolado,
tão longe dos olhos que enxergavam sem ver, as pessoas não o esqueciam, e sua
atitude, sempre a mesma, continuava a incomodar os que mantinham a posse de
suas faculdades mentais. Foi então novamente trazido à superfície da terra para
ser novamente julgado e uma nova pena lhe pudesse ser imposta.
No meio de
uma praça pública, perante milhões de olhos que queriam ver aquele que tanto
perturbava sem nada fazer, ficou exposto com os braços e pernas acorrentadas. Uma
enxurrada de perguntas e acusações lhe foi atirada na face, mas sua única
resposta foi um sorriso, que ele deu como retribuição às doces palavras que só
ele, perante todo aquele vozerio, conseguia ouvir.
Seu julgamento
durou tantos dias e noites que se perderam as contas. Cada testemunha que era
chamada o acusava de um novo crime do qual ele não podia se defender. O juiz
tinha provas irrefutáveis para condená-lo de todos os crimes que lhe recaíam
sobre os ombros e lhe perguntou, pela última vez, o que ele tinha a falar em
sua legítima defesa. Ele ficou no mais completo silêncio, e limitou-se a apenas
sorrir porque tinha sido, naquele momento, acometido de uma doce lembrança que
lhe tomava de supetão. Entendendo aquele sorriso como um gracejo, como uma
afronta a sua autoridade, o juiz, injuriado, o condenou a morte. Todos os que
ouviram a sentença proferida aplaudiram, pois tinham a certeza de que tinha
sido feita, finalmente, justiça naquele caso.
No dia
seguinte todo um turbilhão de pessoas estava reunido na praça para ver o
espetáculo. O condenado fora trazido sobre forte escolta e conduzido ao
cadafalso. Lá o juiz ainda lhe deu uma última oportunidade de dizer algo em sua
defesa, mas ele permaneceu em silêncio. O laço fora passado lentamente sobre
seu pescoço para que as pessoas pudessem contemplar em toda a plenitude o
último ato daquele espetáculo.
No instante
final se fez um silêncio sepulcral, pois o condenado abriu os olhos, olhou para
o alto e sorriu. As pessoas voltaram os olhos para onde ele olhava, e na
cegueira por que eram tomadas, não vendo nada, voltaram os olhos para o chão.
O espetáculo
teve seu desfecho final com os aplausos daqueles que assistiram e uma única e
solitária lágrima daquele que era executado porque cometeu o inadmissível crime
de ver e sentir com clareza aquilo que era vedado aos outros.
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