domingo, 3 de junho de 2012

O perfeito mundo de pedra e metal


Naquele mundo tudo era feito de pedra e metal. As pessoas viviam enclausuradas dentro de suas armaduras e jamais se mostravam umas às outras. Eram armaduras que escondiam tudo, até os olhos das pessoas ficavam protegidos por viseiras. Estavam, todas, tão habituadas a viverem daquela maneira que se tornaram distantes e completas estranhas umas às outras. Ninguém trocava um gesto de carinho com ninguém, os olhares jamais se cruzavam e mesmo as palavras eram raras e escassas naquele mundo.
            Era um mundo áspero, hostil à vida e a qualquer gesto da menor que fosse a delicadeza. “Nada frágil é capaz de sobreviver nesse mundo”, disse, certa vez, um governante, e todos tomaram aquelas palavras como lei. “Toda e qualquer fraqueza será combatida e expurgada”, também dissera. E assim foi feito, e o mundo foi se moldando segundo aquelas palavras e as pessoas se acostumaram àquele modo de vida.
            Naquele mundo o sol mal esquentava e as chuvas eram rigorosamente programadas, os ventos eram controlados e a primavera fora banida. No céu havia eternas nuvens cinza que mal permitiam a passagem da luz do sol durante o dia, e não deixavam com que se entrevisse, à noite, a lua e as estrelas. As cores foram proibidas e no céu há tempos não ousava surgir um arco-íris.
            As pessoas, tão mecanizadas estavam, tão enraizadas dentro de suas armaduras, julgavam viver num mundo perfeito. Até certas palavras, naquele mundo, foram esquecidas, e os sentimentos, os poucos que ainda restavam àquelas pessoas, eram reprimidos. Felicidade era uma palavra que fora abolida, na verdade esquecida, pois não se havia qualquer noção do estado de espírito, do sentimento que ela exprimia.
            Assim, todos viviam naquele mundo tão perfeito, cada qual sem qualquer tipo de preocupação além de seguir as suas rotinas.
            Dentro das grandes cidades, entre aqueles gigantescos prédios, nas longas avenidas, as pessoas corriam de um lado para o outro, muitas vezes se esbarrando umas nas outras, sem ao menos prestarem atenção que, ao seu redor, não havia nada que denotasse a existência de qualquer tipo de vida. Não havia árvores, não havia animais de qualquer tipo. As relações humanas eram mecanizadas.
            Tudo naquele mundo era lógico, programado e perfeito. Nada saia fora do programado, dos horários, da rotina, até que um dia um homem, mesmo naquele mundo hermético, higienizado, adoeceu. Talvez tenha sido só um mal-estar, uma indisposição, mas como ele não estava acostumado a lidar com uma situação daquelas, por uma debilidade e certa lentidão provocada pela “doença” (palavra esta que também tinha sido abolida naquele mundo), fez tudo de forma mais lenta do que o normal. No trabalho, tinha sido o último a chegar, coisa que ninguém percebera, e o último a sair. Nas avenidas e vias públicas, por onde todos andavam tão apressados, ele caminhava devagar, como que contando os passos, equilibrando-se para que sua fraqueza e indisposição não o levassem ao chão. Num espaço vazio, numa ruela estreita, entre dois prédios, ele se recolheu enquanto recobrava um pouco de suas forças. Estranhou ver aquele espaço ali, como que esquecido, incongruente naquele mundo onde tudo era tão perfeito, calculado e no seu devido lugar, tão perfeitamente encaixado. Sentou-se no chão, recolhendo-se nas sombras dos dois prédios, e observou a rua iluminada à sua frente, as pessoas em suas armaduras indo e vindo, sempre tão apressadas, e só ele, ali, sozinho, a observá-las. Era como se só ele, em todo o mundo, estivesse a observar o mundo ao seu redor. Quando se sentiu um pouco melhor, apoiou sua mão no chão, para tentar se levantar, e foi só então que se deu conta de que bem ao seu lado havia algo que ele desconhecia, algo tão minúsculo e frágil que ele quase esmagara com sua mão sem se dar conta. Abaixou-se por inteiro, de forma que quase se deixa no chão, para que seus olhos ficassem da altura do minúsculo ser. Não sabia o nome daquilo, e mesmo a temendo, pois a desconhecendo, não sabia o mal que aquilo poderia lhe causar, a pegou, meio sem jeito, mas com toda a delicadeza de que era possível, a retirou do solo e a depositou num compartimento de sua armadura e a levou para sua casa.
            Só ao chegar a sua casa foi que ele se deu conta de que não sabia o que fazer nem onde colocar aquilo que trazia tão protegido dentro de sua armadura, e a manteve segura na mão por um longo tempo, a contemplar tamanha delicadeza e beleza. Tinha uma cor clara e bela, diferente do cinza metalizado por que estava cercado. Não lembrava o nome daquele ser, não se lembrava do nome que se dava àquela cor, mas aquilo o fez sentir algo diferente, como um palpitar dentro de seu peito. Pensou que seu peito fosse explodir e largou o diminuto ser no chão. Quando o bater em seu pito se normalizou, assim como sua respiração, voltou a pegar aquilo que tanto o maravilhava e intrigava. Desejou tocá-la e sentir seu toque na mão, mas aquela armadura o impedia de ter qualquer sensação do mundo externo. Foi então que resolveu cometer uma insensatez: retirou a luva de sua armadura para poder tocar, com a ponta do seu dedo, o delicado corpo alongado e delicado, uma haste que terminava numa profusão de pequenos braços que se abriam para o mundo, como se o pequeno ser se desnudasse para poder ser contemplado. Mas só tocar não foi suficiente, ele queria sentir mais daquele ser, e mesmo com todo o medo que sentia, retirou seu capacete e ao fazê-lo, suas narinas foram invadidas por um aroma doce e delicado que era desprendido do ser. Jamais havia sentido nada parecido, jamais tinha tocado (e sido tocado) por algo tão delicado; jamais tinha sentido um aroma tão inebriante. Olhou-a de mais perto (sabia, sentia, de alguma maneira, que o ser era feminino).
            Sentiu uma necessidade de compartilhar aquela descoberta com outras pessoas, de apresenta-la ao mundo. Mas antes de apresenta-la era preciso nomeá-la. Ficou horas a ruminar sobre que nome daria aquele diminuto ser. Foi acometido como que por uma lembrança, e a chamou de Flor.
            Havia redescoberto, naquele perfeito mundo de pedra e metal, um ser frágil que havia brotado entre dois prédios, algo tão delicado que havia abalado as estruturas de seu mundo e que, quando fosse reapresentado às pessoas agiria da mesma forma com cada um que a visse, contemplasse, tocasse e sentisse o seu doce aroma.
            Ele não sabia, ainda, mas aquela flor era a primeira que brotava de uma primavera que há tempos não surgia naquele mundo; de uma primavera vigorosa que iria florescer e dar vida, cores e aromas não só ao mundo em si, mas principalmente a todas aquelas pessoas que viviam (ou imaginavam viver) encarceradas dentro daquelas intransponíveis armaduras de metal.

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