Naquele mundo tudo era feito de pedra e metal. As pessoas
viviam enclausuradas dentro de suas armaduras e jamais se mostravam umas às
outras. Eram armaduras que escondiam tudo, até os olhos das pessoas ficavam
protegidos por viseiras. Estavam, todas, tão habituadas a viverem daquela
maneira que se tornaram distantes e completas estranhas umas às outras. Ninguém
trocava um gesto de carinho com ninguém, os olhares jamais se cruzavam e mesmo
as palavras eram raras e escassas naquele mundo.
Era um
mundo áspero, hostil à vida e a qualquer gesto da menor que fosse a delicadeza.
“Nada frágil é capaz de sobreviver nesse mundo”, disse, certa vez, um
governante, e todos tomaram aquelas palavras como lei. “Toda e qualquer
fraqueza será combatida e expurgada”, também dissera. E assim foi feito, e o
mundo foi se moldando segundo aquelas palavras e as pessoas se acostumaram
àquele modo de vida.
Naquele mundo
o sol mal esquentava e as chuvas eram rigorosamente programadas, os ventos eram
controlados e a primavera fora banida. No céu havia eternas nuvens cinza que
mal permitiam a passagem da luz do sol durante o dia, e não deixavam com que se
entrevisse, à noite, a lua e as estrelas. As cores foram proibidas e no céu há
tempos não ousava surgir um arco-íris.
As pessoas,
tão mecanizadas estavam, tão enraizadas dentro de suas armaduras, julgavam
viver num mundo perfeito. Até certas palavras, naquele mundo, foram esquecidas,
e os sentimentos, os poucos que ainda restavam àquelas pessoas, eram
reprimidos. Felicidade era uma
palavra que fora abolida, na verdade esquecida, pois não se havia qualquer
noção do estado de espírito, do sentimento que ela exprimia.
Assim,
todos viviam naquele mundo tão perfeito, cada qual sem qualquer tipo de
preocupação além de seguir as suas rotinas.
Dentro das
grandes cidades, entre aqueles gigantescos prédios, nas longas avenidas, as
pessoas corriam de um lado para o outro, muitas vezes se esbarrando umas nas
outras, sem ao menos prestarem atenção que, ao seu redor, não havia nada que
denotasse a existência de qualquer tipo de vida. Não havia árvores, não havia
animais de qualquer tipo. As relações humanas eram mecanizadas.
Tudo naquele
mundo era lógico, programado e perfeito. Nada saia fora do programado, dos
horários, da rotina, até que um dia um homem, mesmo naquele mundo hermético,
higienizado, adoeceu. Talvez tenha sido só um mal-estar, uma indisposição, mas
como ele não estava acostumado a lidar com uma situação daquelas, por uma
debilidade e certa lentidão provocada pela “doença” (palavra esta que também
tinha sido abolida naquele mundo), fez tudo de forma mais lenta do que o
normal. No trabalho, tinha sido o último a chegar, coisa que ninguém percebera,
e o último a sair. Nas avenidas e vias públicas, por onde todos andavam tão
apressados, ele caminhava devagar, como que contando os passos, equilibrando-se
para que sua fraqueza e indisposição não o levassem ao chão. Num espaço vazio,
numa ruela estreita, entre dois prédios, ele se recolheu enquanto recobrava um
pouco de suas forças. Estranhou ver aquele espaço ali, como que esquecido,
incongruente naquele mundo onde tudo era tão perfeito, calculado e no seu
devido lugar, tão perfeitamente encaixado. Sentou-se no chão, recolhendo-se nas
sombras dos dois prédios, e observou a rua iluminada à sua frente, as pessoas
em suas armaduras indo e vindo, sempre tão apressadas, e só ele, ali, sozinho,
a observá-las. Era como se só ele, em todo o mundo, estivesse a observar o
mundo ao seu redor. Quando se sentiu um pouco melhor, apoiou sua mão no chão,
para tentar se levantar, e foi só então que se deu conta de que bem ao seu lado
havia algo que ele desconhecia, algo tão minúsculo e frágil que ele quase
esmagara com sua mão sem se dar conta. Abaixou-se por inteiro, de forma que
quase se deixa no chão, para que seus olhos ficassem da altura do minúsculo
ser. Não sabia o nome daquilo, e mesmo a temendo, pois a desconhecendo, não
sabia o mal que aquilo poderia lhe causar, a pegou, meio sem jeito, mas com
toda a delicadeza de que era possível, a retirou do solo e a depositou num
compartimento de sua armadura e a levou para sua casa.
Só ao
chegar a sua casa foi que ele se deu conta de que não sabia o que fazer nem
onde colocar aquilo que trazia tão protegido dentro de sua armadura, e a
manteve segura na mão por um longo tempo, a contemplar tamanha delicadeza e beleza.
Tinha uma cor clara e bela, diferente do cinza metalizado por que estava
cercado. Não lembrava o nome daquele ser, não se lembrava do nome que se dava
àquela cor, mas aquilo o fez sentir algo diferente, como um palpitar dentro de
seu peito. Pensou que seu peito fosse explodir e largou o diminuto ser no chão.
Quando o bater em seu pito se normalizou, assim como sua respiração, voltou a
pegar aquilo que tanto o maravilhava e intrigava. Desejou tocá-la e sentir seu
toque na mão, mas aquela armadura o impedia de ter qualquer sensação do mundo
externo. Foi então que resolveu cometer uma insensatez: retirou a luva de sua
armadura para poder tocar, com a ponta do seu dedo, o delicado corpo alongado e
delicado, uma haste que terminava numa profusão de pequenos braços que se
abriam para o mundo, como se o pequeno ser se desnudasse para poder ser
contemplado. Mas só tocar não foi suficiente, ele queria sentir mais daquele
ser, e mesmo com todo o medo que sentia, retirou seu capacete e ao fazê-lo,
suas narinas foram invadidas por um aroma doce e delicado que era desprendido
do ser. Jamais havia sentido nada parecido, jamais tinha tocado (e sido tocado)
por algo tão delicado; jamais tinha sentido um aroma tão inebriante. Olhou-a de
mais perto (sabia, sentia, de alguma maneira, que o ser era feminino).
Sentiu uma
necessidade de compartilhar aquela descoberta com outras pessoas, de apresenta-la
ao mundo. Mas antes de apresenta-la era preciso nomeá-la. Ficou horas a ruminar
sobre que nome daria aquele diminuto ser. Foi acometido como que por uma
lembrança, e a chamou de Flor.
Havia redescoberto,
naquele perfeito mundo de pedra e metal, um ser frágil que havia brotado entre
dois prédios, algo tão delicado que havia abalado as estruturas de seu mundo e
que, quando fosse reapresentado às pessoas agiria da mesma forma com cada um
que a visse, contemplasse, tocasse e sentisse o seu doce aroma.
Ele não
sabia, ainda, mas aquela flor era a primeira que brotava de uma primavera que
há tempos não surgia naquele mundo; de uma primavera vigorosa que iria
florescer e dar vida, cores e aromas não só ao mundo em si, mas principalmente
a todas aquelas pessoas que viviam (ou imaginavam viver) encarceradas dentro
daquelas intransponíveis armaduras de metal.
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