domingo, 24 de junho de 2012

O gosto da liberdade

Naqueles longos e intermináveis anos em que passou na prisão, ele contou os dias. Fazia marcações nas paredes usando uma pequena faca que guardava escondida debaixo de uma pedra sobre sua cama. A cada dia, quando o sol se punha, ele fazia a marca, até que quase não havia mais espaço nas paredes. Era um preso privilegiado, pois tinha uma cela só pra si, diziam os outros detentos e os carcereiros, num pavilhão afastado dos outros, onde ficavam trancados os que cometeram os piores crimes, mas ele não sentia possuidor de qualquer privilégio, preferindo ter que dividir a cela com mais alguns detentos, pois pelo menos teria com quem trocar algumas palavras, a estar ali, naquele minúsculo cubículo, sozinho, tendo como única companhia sua sombra. As poucas palavras que trocava eram com os carcereiros, quando estes vinham lhe trazer suas refeições ou leva-lo para um breve “banho de sol”. Ele tentava entabular uma conversa, puxar um assunto qualquer, mas os carcereiros muitas vezes o olhavam com pena e outros com ódio, e se limitavam a ficar em silêncio.
            No início ele recebia umas poucas visitas de amigos, familiares e de sua amada esposa, por quem ele esperava ansiosamente, mas aos poucos deixou de vê-los e até de receber suas cartas. Passou dias a fio sem comer de tão apreensivo que estava, andando de um lado pra outro, perguntando-se o motivo da ausência de todos aqueles que amava e que o amavam. Cansou de escrever cartas que nunca eram recebidas, até que acabaram os papeis e acabou a tinta das canetas. Ele desculpava, mesmo assim, suas ausências, imaginando como deve ser duro, lá fora, ter que aguentar todo o preconceito das pessoas ignorantes por terem um ente querido preso e ter que visita-lo. Sonhava com o dia em que, livre, iria procurar essas pessoas que o abandonaram para abraça-las e beijá-las, para fazê-las ver e sentir que estavam desculpadas e pedir-lhes desculpas, pois, sabia, todo aquele sofrimento tinha sido ele a causa.
            Mais de vinte anos contando os dias e a medida que os poucos espaços das paredes iam acabando sabia que se aproximava o dia em que seria posto em liberdade, após ter pagado pelo seu crime. Sua liberdade estava próxima, e quase podia senti-la entre os dedos, segurando-a.
            Num fim de dia, assim que o sol se pôs, fez a última marca naquela parede, e soube que no dia seguinte viriam pegá-lo para leva-lo embora. Não dormiu naquela noite, de tão ansioso que estava e os carcereiros encontraram-no já de pé, vestido e com um sorriso no rosto, pronto para ir embora, para poder sentir, após tantos anos, o gosto da liberdade. Algemaram-no pela última vez enquanto era levado pelos corredores estreitos sendo saudado por uns e insultado por outros que ainda tinham pena a cumprir. Via o céu sobre sua cabeça tão azul como ele nunca tinha visto e ouviu o canto dos poucos pássaros que se vinham pousar nos tetos dos pavilhões. Sua respiração estava pesada e ele se sentia sufocar a cada novo passo que dava. Imaginava quem o estaria esperando do lado de fora, quando atravessasse aquele imenso portão.
            Sentiu quando lhe tiravam as algemas e um dos carcereiros lhe deu um leve tapa no ombro, o mais próximo de um carinho que ele recebeu em todos aqueles anos. Viu quando o portão era aberto lentamente e quando, por fim, teve espaço suficiente para ver do lado de fora, não viu ninguém a lhe esperar. Deu alguns passos inseguros, pois suas pernas tremiam, rumo a liberdade por que tanto esperava, com a expectativa de ver alguém a lhe esperar, imaginando que um alguém qualquer tinha contado os dias do lado de fora, livre, da mesma forma que ele contava do lado de dentro, preso. Mas não havia ninguém ali. Não havia um abraço, um beijo ou uma palavra. Não havia absolutamente nada disso nem ninguém. Olhou para o alto e viu um manto de nuvens diáfanas cobrir parcialmente o céu; olhou mais uma vez para trás e viu o imenso portão sendo fechado às suas costas. Parado, ele respirou fundo duas ou três vezes, criando coragem e força para seguir seu caminho, agora que sua liberdade havia sido restituída, e ir à procura daqueles a quem não via há tantos anos.
           
Tudo estava mudado. As ruas pareciam ais largas e os carros corriam desenfreados de um lado para o outro naquele bairro. Ele custou a encontrar o caminho de casa, pois não reconhecia mais quase nada após tantos anos. Guiou-se pelo instinto, reconhecendo uma árvore, que havia sido poupada pelo progresso aqui ou ali, até que reconheceu uma onde tinha deixado, certa vez, uma marca. Tocou seu tronco ainda pulsante de vida e procurou com os olhos aqueles nomes que tinha escrito, deixando uma cicatriz na árvore, com a ponta de um canivete, mas o tempo os havia apagado. Sentiu um frio de tristeza lhe percorrer todo o corpo, pois imaginava que aquela marca seria eterna...
            No coração do bairro, onde vivera toda a sua infância e adolescência, de onde fora tirado para cumprir sua pena pelo crime cometido, as mudanças também tinha chegado, mas em bem menor escala. Algumas casas ele reconhecia, o campo de futebol ainda continuava o mesmo, mas a praça onde costumava, quando criança, ficar até tarde da noite até que sua mãe vinha chama-lo estava em ruínas. Dali, onde jazia o esqueleto da praça, ele podia fechar os olhos e se deixar guiar, pois seus passos o levariam até sua casa.
            Enquanto caminhava pelas ruas de seu bairro, era apontada pelas pessoas e ele sorria de volta, mas elas não reconheciam nele aquele menino que corria pelas ruas, descalço, que jogava bola naquele campo, que ficava até tarde da noite sentado nos bancos daquela praça e que fora envolvido num crime do qual ele queria esquecer e se arrependia amargamente, que lhe roubara não só sua liberdade, mas boa parte da sua vida.
            Chegou, por fim, à sua rua, que continuava praticamente a mesma de tantos anos antes. Viu a árvore em frente a sua casa e teve vontade de correr e tocá-la uma vez, abraça-la e subir em seus galhos.
            Ficou um longo tempo em frente a sua casa, sem ousar se aproximar do portão e ver se ele continuava aberto. Deu alguns passos e viu que estava trancado com uma grossa corrente e um cadeado. “Estranho”, ele pensou, “o portão de casa sempre ficou aberto dia e noite”. Olhou um lado e outro, em busca de uma campainha, mas não a encontrando, resolveu bater palmas e chamar pelos de sua família. Demorou até que alguém respondesse e viesse abrir o portão. Quando ele viu, era uma senhora idosa abrir uma brecha no portão e olhá-lo de cima a baixo.
            - Vá embora. Hoje eu não tenho nada para você – disse ela, fechando o portão.
            Ele ainda tentou impedi-la, tentando segurar o portão, dizendo que ela tinha se enganado, que não o tinha reconhecido.
            - Mas mãe, sou eu. A senhora não me reconhece?
            - Eu não tenho mais filho. Ele morreu há anos. Agora vá embora ou eu chamo a polícia, seu vagabundo.
            Ele imaginava que seria recebido de mil e uma maneiras, menos daquela. Então era aquilo que sua mãe pensava, que não tinha mais filho? Sentiu aquelas palavras como uma punhalada no peito. De cabeça baixa, ele se sentou no chão, encostado à árvore e deixou que aquela tristeza daquele primeiro contato com sua mãe se diluísse. Esperou quase uma hora naquela posição, sequer atentando para as pessoas para as pessoas que passavam à sua frente apontando e fazendo gestos de desaprovação. Levantou-se lentamente, com as pernas pesando mais do que chumbo e foi novamente até a frente do portão, para tornar a chamar sua mãe.
            Implorou e chegou a chorar, mas não havia nada que pudesse demovê-la. Para ela, ele tinha morrido, sido sepultado dentro daquela prisão e esquecido, e tornou a ameaça-lo: se não fosse embora, iria chamar a polícia.
            Abatido, ele deixou que seus passos o levassem para outras ruas, para a frente de outras casas conhecidas suas em outros tempos. Estava cansado e triste, após tão longos anos, não ser reconhecido, ser recebido daquela maneira pela sua própria mãe!
            Foi até a rua onde moravam alguns amigos e ficou um tempo em frente a casa de alguns, com medo de se anunciar. Tinha medo de ser escorraçado, pelos amigos, da mesma forma que fora por sua própria mãe. Chegou até a lanchonete que fora outrora gerida pelo pai de seu melhor amigo. Sentou-se num banco alto em frente ao balcão e esperou ser atendido, o que demorou um grande tempo. Seus cabelos estavam grandes, despenteados, tinha olheiras profundas e uma basta barba a fazer. Ficou olhando as pessoas indo e vindo e a intensa movimentação dentro do estabelecimento, até que seus olhos caíram sobre um homem que gerenciava o negócio, atendia aos clientes e cuidava do caixa. Reconheceu-o imediatamente, pois apesar do tempo que passou, seu amigo continuava com o mesmo jeito enérgico e com o mesmo olhar. Tentou chamar sua atenção e ele o olhou de frente, mas não o reconheceu. Fez apenas um gesto com a cabeça indicando-o para que um funcionário fosse ver seu pedido. Só então se deu conta de que não tinha um único centavo nos bolsos, e o funcionário ao notar isso, tratou de coloca-lo pra fora.
            - Mas eu preciso falar com ele – falou, apontando para o amigo, que tinha parado seus afazeres para ver quem era aquele indigente que entrara em seu estabelecimento sem dinheiro para comprar nada e estava tendo que ser expulso para não incomodar os outros clientes. O amigo ficou impassível, se o reconhecer em absoluto, por mais que ele falasse, que dissesse seu nome, que tentasse força-lo a lembrar.
            - Não o conheço – foi a única coisa que disse, virando as costas e voltando aos seus afazeres, pedindo desculpas a um cliente pelo contratempo.
            Deixou que seus passos o levassem, mais uma vez, para longe, para perto da pessoa que ele tinha certeza de que não tinha esquecido, um minuto sequer, dele.
            A casa onde ela morava continuava a mesma que ele guardava na memória. Ficou observando, vendo se alguém sairia ou chegaria. Tinha medo de se anunciar. Ficou longas e intermináveis horas, ali, parado em frente aquela casa, sem que nada acontecesse, sem ver ninguém, até que viu a porta se abrir e por ela passar um jovem adolescente, que ia para a escola e se despedia da mãe. Logo em seguida apareceu a mulher, que o homem reconheceu de imediato apesar das mudanças que o tempo tinha lhe infligido. Quando ia se aproximar dela, viu surgir um outro homem, um amigo de outros tempos que ele reconheceu, que a enlaçou pela cintura e a levou para dentro de casa.
            Não conseguindo conter em seu peito aquela tristeza que lhe tomava por inteiro, ele deu vazão a tudo que sentia através de lágrimas, que escoavam em abundância de seus olhos. Logo toda a sua face estava manchada pelos sulcos deixados pelas lágrimas em sua alma. Soluçava alto, sentindo um gosto amargo na boca e repetia de forma ininteligível a palavra “liberdade”. Tinha passado tantos e tão longos anos esperando por aquele momento, contando os dias, lembrando, para se ver assim, esquecido de tal maneira.
            Chorou por horas a fio, sentindo o gosto amargo na boca e a dor na alma, repetindo sem cessar:
            - Tantos anos, esperando por esse momento, por essa tal liberdade, para ver que seu gosto é amargo, para ver que fui esquecido até por aqueles a quem mais amei um dia. Sentia-me muito mais reconfortado quando vivia a ideia e contava os dias e horas. Agora, ao me deparar com a realidade, vi que vivi uma ilusão na qual era feliz. Pelo menos, quando estava preso ainda tinha uma esperança, e agora vejo que não adiantou de nada cultivá-la...
            Abaixou a cabeça, chorou mais um pouco e foi embora, deixando que seus passos o levassem para um destino incerto, onde poderia esquecer, pois esquecido ele já fora.

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