Naqueles longos e intermináveis anos em que passou na
prisão, ele contou os dias. Fazia marcações nas paredes usando uma pequena faca
que guardava escondida debaixo de uma pedra sobre sua cama. A cada dia, quando
o sol se punha, ele fazia a marca, até que quase não havia mais espaço nas
paredes. Era um preso privilegiado, pois tinha uma cela só pra si, diziam os
outros detentos e os carcereiros, num pavilhão afastado dos outros, onde
ficavam trancados os que cometeram os piores crimes, mas ele não sentia
possuidor de qualquer privilégio, preferindo ter que dividir a cela com mais
alguns detentos, pois pelo menos teria com quem trocar algumas palavras, a
estar ali, naquele minúsculo cubículo, sozinho, tendo como única companhia sua
sombra. As poucas palavras que trocava eram com os carcereiros, quando estes
vinham lhe trazer suas refeições ou leva-lo para um breve “banho de sol”. Ele tentava
entabular uma conversa, puxar um assunto qualquer, mas os carcereiros muitas
vezes o olhavam com pena e outros com ódio, e se limitavam a ficar em silêncio.
No início
ele recebia umas poucas visitas de amigos, familiares e de sua amada esposa,
por quem ele esperava ansiosamente, mas aos poucos deixou de vê-los e até de
receber suas cartas. Passou dias a fio sem comer de tão apreensivo que estava,
andando de um lado pra outro, perguntando-se o motivo da ausência de todos
aqueles que amava e que o amavam. Cansou de escrever cartas que nunca eram
recebidas, até que acabaram os papeis e acabou a tinta das canetas. Ele desculpava,
mesmo assim, suas ausências, imaginando como deve ser duro, lá fora, ter que
aguentar todo o preconceito das pessoas ignorantes por terem um ente querido
preso e ter que visita-lo. Sonhava com o dia em que, livre, iria procurar essas
pessoas que o abandonaram para abraça-las e beijá-las, para fazê-las ver e
sentir que estavam desculpadas e pedir-lhes desculpas, pois, sabia, todo aquele
sofrimento tinha sido ele a causa.
Mais de
vinte anos contando os dias e a medida que os poucos espaços das paredes iam
acabando sabia que se aproximava o dia em que seria posto em liberdade, após
ter pagado pelo seu crime. Sua liberdade estava próxima, e quase podia senti-la
entre os dedos, segurando-a.
Num fim de dia,
assim que o sol se pôs, fez a última marca naquela parede, e soube que no dia
seguinte viriam pegá-lo para leva-lo embora. Não dormiu naquela noite, de tão
ansioso que estava e os carcereiros encontraram-no já de pé, vestido e com um
sorriso no rosto, pronto para ir embora, para poder sentir, após tantos anos, o
gosto da liberdade. Algemaram-no pela última vez enquanto era levado pelos
corredores estreitos sendo saudado por uns e insultado por outros que ainda
tinham pena a cumprir. Via o céu sobre sua cabeça tão azul como ele nunca tinha
visto e ouviu o canto dos poucos pássaros que se vinham pousar nos tetos dos
pavilhões. Sua respiração estava pesada e ele se sentia sufocar a cada novo
passo que dava. Imaginava quem o estaria esperando do lado de fora, quando atravessasse
aquele imenso portão.
Sentiu quando
lhe tiravam as algemas e um dos carcereiros lhe deu um leve tapa no ombro, o
mais próximo de um carinho que ele recebeu em todos aqueles anos. Viu quando o
portão era aberto lentamente e quando, por fim, teve espaço suficiente para ver
do lado de fora, não viu ninguém a lhe esperar. Deu alguns passos inseguros,
pois suas pernas tremiam, rumo a liberdade por que tanto esperava, com a
expectativa de ver alguém a lhe esperar, imaginando que um alguém qualquer
tinha contado os dias do lado de fora, livre, da mesma forma que ele contava do
lado de dentro, preso. Mas não havia ninguém ali. Não havia um abraço, um beijo
ou uma palavra. Não havia absolutamente nada disso nem ninguém. Olhou para o alto
e viu um manto de nuvens diáfanas cobrir parcialmente o céu; olhou mais uma vez
para trás e viu o imenso portão sendo fechado às suas costas. Parado, ele
respirou fundo duas ou três vezes, criando coragem e força para seguir seu
caminho, agora que sua liberdade havia sido restituída, e ir à procura daqueles
a quem não via há tantos anos.
Tudo estava mudado. As ruas pareciam ais largas e os carros
corriam desenfreados de um lado para o outro naquele bairro. Ele custou a
encontrar o caminho de casa, pois não reconhecia mais quase nada após tantos
anos. Guiou-se pelo instinto, reconhecendo uma árvore, que havia sido poupada
pelo progresso aqui ou ali, até que reconheceu uma onde tinha deixado, certa
vez, uma marca. Tocou seu tronco ainda pulsante de vida e procurou com os olhos
aqueles nomes que tinha escrito, deixando uma cicatriz na árvore, com a ponta
de um canivete, mas o tempo os havia apagado. Sentiu um frio de tristeza lhe
percorrer todo o corpo, pois imaginava que aquela marca seria eterna...
No coração
do bairro, onde vivera toda a sua infância e adolescência, de onde fora tirado
para cumprir sua pena pelo crime cometido, as mudanças também tinha chegado,
mas em bem menor escala. Algumas casas ele reconhecia, o campo de futebol ainda
continuava o mesmo, mas a praça onde costumava, quando criança, ficar até tarde
da noite até que sua mãe vinha chama-lo estava em ruínas. Dali, onde jazia o
esqueleto da praça, ele podia fechar os olhos e se deixar guiar, pois seus
passos o levariam até sua casa.
Enquanto caminhava
pelas ruas de seu bairro, era apontada pelas pessoas e ele sorria de volta, mas
elas não reconheciam nele aquele menino que corria pelas ruas, descalço, que
jogava bola naquele campo, que ficava até tarde da noite sentado nos bancos
daquela praça e que fora envolvido num crime do qual ele queria esquecer e se
arrependia amargamente, que lhe roubara não só sua liberdade, mas boa parte da
sua vida.
Chegou, por
fim, à sua rua, que continuava praticamente a mesma de tantos anos antes. Viu a
árvore em frente a sua casa e teve vontade de correr e tocá-la uma vez, abraça-la
e subir em seus galhos.
Ficou um
longo tempo em frente a sua casa, sem ousar se aproximar do portão e ver se ele
continuava aberto. Deu alguns passos e viu que estava trancado com uma grossa
corrente e um cadeado. “Estranho”, ele pensou, “o portão de casa sempre ficou
aberto dia e noite”. Olhou um lado e outro, em busca de uma campainha, mas não
a encontrando, resolveu bater palmas e chamar pelos de sua família. Demorou até
que alguém respondesse e viesse abrir o portão. Quando ele viu, era uma senhora
idosa abrir uma brecha no portão e olhá-lo de cima a baixo.
- Vá
embora. Hoje eu não tenho nada para você – disse ela, fechando o portão.
Ele ainda
tentou impedi-la, tentando segurar o portão, dizendo que ela tinha se enganado,
que não o tinha reconhecido.
- Mas mãe,
sou eu. A senhora não me reconhece?
- Eu não
tenho mais filho. Ele morreu há anos. Agora vá embora ou eu chamo a polícia, seu
vagabundo.
Ele imaginava
que seria recebido de mil e uma maneiras, menos daquela. Então era aquilo que
sua mãe pensava, que não tinha mais filho? Sentiu aquelas palavras como uma
punhalada no peito. De cabeça baixa, ele se sentou no chão, encostado à árvore
e deixou que aquela tristeza daquele primeiro contato com sua mãe se diluísse. Esperou
quase uma hora naquela posição, sequer atentando para as pessoas para as
pessoas que passavam à sua frente apontando e fazendo gestos de desaprovação. Levantou-se
lentamente, com as pernas pesando mais do que chumbo e foi novamente até a frente
do portão, para tornar a chamar sua mãe.
Implorou e
chegou a chorar, mas não havia nada que pudesse demovê-la. Para ela, ele tinha
morrido, sido sepultado dentro daquela prisão e esquecido, e tornou a ameaça-lo:
se não fosse embora, iria chamar a polícia.
Abatido,
ele deixou que seus passos o levassem para outras ruas, para a frente de outras
casas conhecidas suas em outros tempos. Estava cansado e triste, após tão
longos anos, não ser reconhecido, ser recebido daquela maneira pela sua própria
mãe!
Foi até a
rua onde moravam alguns amigos e ficou um tempo em frente a casa de alguns, com
medo de se anunciar. Tinha medo de ser escorraçado, pelos amigos, da mesma
forma que fora por sua própria mãe. Chegou até a lanchonete que fora outrora
gerida pelo pai de seu melhor amigo. Sentou-se num banco alto em frente ao
balcão e esperou ser atendido, o que demorou um grande tempo. Seus cabelos
estavam grandes, despenteados, tinha olheiras profundas e uma basta barba a
fazer. Ficou olhando as pessoas indo e vindo e a intensa movimentação dentro do
estabelecimento, até que seus olhos caíram sobre um homem que gerenciava o
negócio, atendia aos clientes e cuidava do caixa. Reconheceu-o imediatamente,
pois apesar do tempo que passou, seu amigo continuava com o mesmo jeito
enérgico e com o mesmo olhar. Tentou chamar sua atenção e ele o olhou de
frente, mas não o reconheceu. Fez apenas um gesto com a cabeça indicando-o para
que um funcionário fosse ver seu pedido. Só então se deu conta de que não tinha
um único centavo nos bolsos, e o funcionário ao notar isso, tratou de coloca-lo
pra fora.
- Mas eu
preciso falar com ele – falou, apontando para o amigo, que tinha parado seus
afazeres para ver quem era aquele indigente que entrara em seu estabelecimento
sem dinheiro para comprar nada e estava tendo que ser expulso para não
incomodar os outros clientes. O amigo ficou impassível, se o reconhecer em absoluto,
por mais que ele falasse, que dissesse seu nome, que tentasse força-lo a
lembrar.
- Não o
conheço – foi a única coisa que disse, virando as costas e voltando aos seus
afazeres, pedindo desculpas a um cliente pelo contratempo.
Deixou que
seus passos o levassem, mais uma vez, para longe, para perto da pessoa que ele
tinha certeza de que não tinha esquecido, um minuto sequer, dele.
A casa onde
ela morava continuava a mesma que ele guardava na memória. Ficou observando,
vendo se alguém sairia ou chegaria. Tinha medo de se anunciar. Ficou longas e
intermináveis horas, ali, parado em frente aquela casa, sem que nada
acontecesse, sem ver ninguém, até que viu a porta se abrir e por ela passar um
jovem adolescente, que ia para a escola e se despedia da mãe. Logo em seguida
apareceu a mulher, que o homem reconheceu de imediato apesar das mudanças que o
tempo tinha lhe infligido. Quando ia se aproximar dela, viu surgir um outro
homem, um amigo de outros tempos que ele reconheceu, que a enlaçou pela cintura
e a levou para dentro de casa.
Não conseguindo
conter em seu peito aquela tristeza que lhe tomava por inteiro, ele deu vazão a
tudo que sentia através de lágrimas, que escoavam em abundância de seus olhos. Logo
toda a sua face estava manchada pelos sulcos deixados pelas lágrimas em sua
alma. Soluçava alto, sentindo um gosto amargo na boca e repetia de forma ininteligível
a palavra “liberdade”. Tinha passado tantos e tão longos anos esperando por
aquele momento, contando os dias, lembrando, para se ver assim, esquecido de
tal maneira.
Chorou por
horas a fio, sentindo o gosto amargo na boca e a dor na alma, repetindo sem
cessar:
- Tantos
anos, esperando por esse momento, por essa tal liberdade, para ver que seu
gosto é amargo, para ver que fui esquecido até por aqueles a quem mais amei um
dia. Sentia-me muito mais reconfortado quando vivia a ideia e contava os dias e
horas. Agora, ao me deparar com a realidade, vi que vivi uma ilusão na qual era
feliz. Pelo menos, quando estava preso ainda tinha uma esperança, e agora vejo
que não adiantou de nada cultivá-la...
Abaixou a
cabeça, chorou mais um pouco e foi embora, deixando que seus passos o levassem
para um destino incerto, onde poderia esquecer, pois esquecido ele já fora.
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