Quando nascem, todas as crianças têm asas para poder ir
aonde quiserem, para fazer o que bem desejarem, pois são inteiramente livres,
pois pertencem só e unicamente a si mesmas. Elas brincam livres no céu, sob os
olhares estupefatos dos adultos, invejosos daquela liberdade e alegria a que é
permitido só aos que possuem alma de criança.
No céu, as
crianças se sentiam inteiramente donas de si, e podiam viajar livremente nos
braços dos ventos, mas havia uma em especial que era mais livre do que as
outras: um menino que tinha um riso capaz de sobrepujar o barulho dos trovões
nas noites de tempestade, que tinha asas tão grandes que ele as usava para
abraçar a si mesmo quando estava com frio nas noites de inverno. Ele, junto com
seus amigos, voavam pelos céus e chegavam perto do sol, mas só ele, ousado como
era, ousava se aproximar o suficiente para sentir seu calor a lhe queimar a
pele, e fazia isso com tanta frequência que sua cor era de um saudável
bronzeado. Nas noites de luar, todas as crianças eram livres para ficar até
tarde acordadas, e algumas, quando sentiam sono, podiam mesmo dormir planando
no ar ou nos braços de uma estrela, mas diante de tanta alegria e felicidade,
eram raras as que sentiam sono. Umas, mais afoitas, voavam bem alto em torno na
lua, enquanto outras, mais alegres, brincavam com as estrelas, jogando-as de um
lado para o outro, e os adultos, infantis, imaginavam tratar-se de uma “estrela
cadente”, quando, na verdade, era apenas uma estrela que se deixava fazer de
brinquedo pelas crianças.
As crianças
eram inteiramente felizes e livres, mas aquele menino era mais do que todas as
outras, e primeira vez que seu sorriso lhe sumiu do rosto foi quando viu um
adulto segurando uma criança, um amigo seu, pelo pé, impedindo-a de voar, prendendo
suas asas num abraço apertado para que elas não abrissem. Ele então entendeu
que aquele era o primeiro indício de uma obrigação a que os adultos impunham às
crianças: o crescimento. Aquela foi a primeira criança que ele via dar seus
primeiros sinais de crescimento a que os adultos e o mundo impunham, e ficou
triste por dias a fio, sem ânimo sequer para voar. Mas logo esqueceu, como
todas as crianças esquecem rapidamente das coisas, pois tinha muitos outros amigos
para brincar durante os dias e noites de sua eterna infância.
Um dia,
quando estava no céu a brincar com uma nuvem, fazendo cócegas nela para
obriga-la a tomar a forma de um animal, viu uma criança com os pés plantados no
chão. Ele a chamou, mostrando como estavam a se divertir, ele a nuvem, convidando-a
a participar da brincadeira, ao que ela respondeu com um olhar triste,
mostrando que suas asas pendiam inertes. Ele ainda fez menção de ir até ela e
voar com ela nos braços, ao que ela recusou, dizendo que a partir daquele
momento não poderia mais voar, pois seu lugar era ali, com os pés bem firmes no
chão. Ficou com uma lágrima presa na garganta, mas se aquele era o desejo
daquela criança, tudo bem, ele respeitaria. Ainda havia, mesmo assim, algumas
crianças livres, com enormes asas, embora não tão grandes quanto as suas, com
quem poderia brincar e voar livremente pelo céu.
Passadas algumas
semanas, ele, num voo solitário num início de manhã, percebeu que havia menos
crianças do que o normal, e olhou para baixo e viu um massacre acontecendo
diante de seus olhos: adultos ignorantes prendiam as asas das crianças para que
elas não pudessem mais voar, e outros iam ainda mais longe e arrancavam as asas
para que nunca mais elas pudessem ser livres. Dessa vez, ele chorou, e suas
lágrimas caindo eram como uma tempestade a desabar sobre a cabeça dos incautos
que faziam aquilo com as crianças, prendendo-as no chão.
Algumas crianças,
mesmo livres, começaram a não conseguir mais voar tão alto e pouco a pouco
foram perdendo, naturalmente, capacidade de voar, e estas, quando punham seus
pés no chão e não tinham mais forças nas asas, choravam tão alto que até as
estrelas no céu se compadeciam de suas novas condições, presas ao chão. Outras,
para evitar perderem suas capacidades de voar, suas preciosas liberdades,
tentavam viver uma vida dupla: na terra, como todos, e no céu, livres; mas a
estas logo as obrigações do dia-a-dia, as infindáveis rotinas prendiam, a ponto
de elas se esquecerem de como se faz para voar, e suas asas caíam inertes ao
longo do corpo.
Uma a uma,
as crianças começavam a ficar presas ao chão, umas por que eram obrigadas, com
os adultos obrigando-as a se plantarem no chão, enquanto outras tinham as asas
as asas brutalmente arrancadas, para que nunca mais pudessem voar livremente no
céu.
Todas aquelas
crianças que um dia foram livres não mais voavam, com a exceção daquele menino,
que agora brincava sozinho. Ia de uma nuvem a outra, brincava de
esconde-esconde com o sol, conversava, à noite, com a lua e ainda jogava, vez
por outra, uma estrela de um lado para o outro. Quando olhava para baixo e via
um de seus antigos amigos, agora transformados em adultos, chamava por eles,
mas eles, tão ocupados em suas rotinas, ou não ouviam, ou não escutavam ou
chamado, ou fingiam não ouvir aquele chamado, e seguiam sempre em frente, com a
cabeça baixa e os pés bem firmes plantados no chão. Ele, mesmo percebendo que mais que chamasse
os outros não olhariam para cima, continuava a chamar até cansar. E quando eles
não podiam mais ser vistos, seja porque entravam em um ônibus, carro ou se trancavam
num escritório ou dentro de casa, sentia-se cansado e triste e perdia, por um
instante, a vontade de voar, e em uma ocasião quase foi pego por um adulto, que
desejava lhe podar as asas.
Sentia-se
só, agora que não tinha uma outra criança com quem brincar e compartilhar as
alegrias e sorrisos, e essa solidão foi lhe pesando dia após dia a ponto de tal
peso lhe impedir de voar tão alto como gostava. Um dia, não aguentando mais tal
peso, resolveu se deixar cair lentamente, tal qual uma pluma que se deixa levar
ao sabor do vento. Pousou suavemente no chão e dobrou delicadamente suas asas e
começou, a partir daquele dia, a viver como uma pessoa comum, a seguir uma
rotina, a ter suas responsabilidades.
Passaram-se
muitos anos e ele cresceu, como toda criança cresce, e, tão ocupado como estava
em viver a vida, se esquecia do menino que um dia fora. Nunca olhava para o
céu, seja durante o dia seja à noite, e sua pele, antes bronzeada, perdeu a beleza
da cor e o viço.
Mas um dia,
enquanto voltava de seu trabalho para casa, parou subitamente, como que algo
estivesse a lhe chamar. Era noite e não havia uma única nuvem no céu e ele, ao
olhar para cima, ao ver tantas estrelas e a lua a brilhar majestosa no
firmamento, e foi então que um turbilhão de lembranças lhe tomou de assalto e
ele sorriu e chorou ao lembrar do menino que um dia fora e do qual havia se
esquecido. Olhou para as costas e viu as asas abrindo lentamente e sorriu ao
perceber que elas ainda estavam vivas e possuíam vigor suficiente para levá-lo
ao céu. Respirou fundo duas ou três vezes e deixou suas asas livres para
baterem e lhe levarem de volta aos braços do céu. Sentiu seus pés iam pouco a
pouco se soltando do chão e ele pôde se tornar o primeiro homem, adulto, a
poder voar. Seguia suas rotinas e tinha suas responsabilidades do dia-a-dia,
sim, mas sempre que, cansado, voltava para casa, parava, olhava para o céu e ao
ver as estrelas e a lua, podia voltar a ser o menino livre que um dia fora, e
voar livremente pelo céu, privilégio este que só é dado aos que possuem uma
eterna alma de criança e aos que fazem devido uso de suas asas.
Muito bom esse texto, cheio de sensibilidade, Gostei muito.
ResponderExcluirParabéns !!!!!