Quanto anos já havia
passado ali?, ele se perguntou ao acordar naquela manhã. Quanto anos havia perdido, tendo sido
privado de sua liberdade?, ficou a se perguntar. Olhava ao redor e só via
aquelas paredes repletas de marcas deixadas por outros iguais a ele que haviam
sido trancafiados, ficado presos naquela minúscula cela daquela prisão, marcas
usadas para marcar o tempo, tempo este que passa sempre igual, sempre tão
devagar...
Ele se
levanta e anda de um lado para o outro, desesperado, perguntando-se o que será
feito dele, e quando virão buscá-lo para levá-lo a que lugar, nem ele mesmo
sabia. Já havia, em todo aquele tempo desde que fora feito prisioneiro, se
feito as mesmas perguntas, já tinha dado os mesmos passos, já tinha sido
consumido vezes sem conta pelas mesmas angústias. Olhava para o teto e ouvia
ecos de passos de um prisioneiro que, por certo, estava mesma situação que ele,
olhava para ambos os lados, e via as paredes, olhava ara frente e via a
minúscula janela, no canto mais alto, através da qual ele sequer conseguia ver
o que havia do outro lado, fora da cela, e, às suas costas, a pesada porta de
ferro, que ele nunca vira ser aberta desde que fora desumanamente jogado ali. A
parca alimentação e água que recebia era entregue através de uma portinhola no
rés do chão, aberta duas vezes por dia, uma pela manhã e uma no final da tarde,
por onde passava um prato de ferro com uma comida que ele não conseguia
distinguir do que se tratava, e um copo com uma água suja, de gosto terroso. Uma
vez por dia, em horários que variavam conforme o estado de espírito do carcereiro,
a portinhola era aberta para recolher os dejetos do homem, que ele entregava
dentro de um balde.
Tentava se lembrar
dos motivos que o levaram até ali, os momentos que antecederam a sua prisão, o
julgamento, os últimos instantes de uma liberdade esquecida, mas por mais que
se esforçasse, nenhuma lembrança lhe vinha a ente, como se todas tivessem sido
esquecidas, agora que ele estava ali, tão privado de tudo, como que lembranças,
ali dentro, fossem proibidas. Ele se sentava na cama dura de cimento com um
fino colchão já gasto, repleto de sujeira e cheiros indistintos, com as mãos
cobrindo o rosto e os olhos fechados com força, esforçando-se para se lembrar
de algo. Mas lembrança alguma lhe vinha à mente, e ele voltava a se levantar e
a andar de um lado pro outro. Não conseguia se lembrar do seu passado, do que o
trouxe até ali, já não conseguia sequer se lembrar mesmo de quem era, de seu
nome, do homem que um dia fora. Não conseguia se lembrar de absolutamente nada
e de tanto conversar apenas com seus próprios pensamentos, sequer se lembrava
de sua própria voz.
Sua garganta vivia eternamente
seca com a sede lhe consumia, a fome que sentia era demasiadamente forte e seu
estômago sempre doía e ameaçava explodir em dores sempre que comia aquilo que
lhe era servido, mas, mesmo assim, ele comia, pois era sentir dor ou sentir
fome; seu corpo inteiro doía, fruto das noites mal dormidas e do pouco espaço
que tinha para se movimentar; sentia tantos e tão desagradáveis cheiros que
começou a achar que tudo provinha dele, pois desde que fora encarcerado ali,
nunca lhe fora dada a oportunidade de tomar um banho. Sentia calor e frio
intensos, por vezes frio ao meio-dia e calores em plena madrugada.
Aquela tortura o estava matando
pouco a pouco, estava lhe consumindo por dentro, fazendo-o se esquecer de tudo.
Não se lembrava sequer de qual era o seu nome, não se lembrava do som de sua
própria voz e não se lembrava mais qual a sua aparência. Punha, por vezes, a
mão sobre o rosto, acariciando-o, tentando adivinhar suas feições, mas só o que
sentia eram os pelos ásperos de uma barba que crescia diariamente que havia
tomado todo o seu rosto. Passava a mão na cabeça, e só sentia o cabelo duro,
sujo e malcuidado. Usando suas mãos, apalpava o corpo, e só sentia um amontoado
de ossos cobertos por uma pele seca e suja como um pedaço velho de um
pergaminho quebradiço.
Cansou de tudo aquilo e
levantando-se de súbito, foi até a porta, que começou a esmurrar, mas estava
tão fraco, já tendo esquecido até mesmo a força que um dia tivera, que seus
socos não produziam som algum quando batiam na pesada porta, só lhe provocavam
dor nas mãos frágeis. Não deu importância para a dor, continuando a bater na
porta. De sua boca saía um som indistinto que parecia tudo, menos uma voz
humana, muito mais parecido com um grunhido ou o gemido de um animal
agonizante. Quando cansou, que se deixou escorregar, ficando deitado no chão,
com a cabeça colada à porta, ouviu, ou imaginou ouvir, vozes e risos do outro
lado da porta. Ele tentou, num último esforço, bater mais uma vez, respirou
fundo, deixando que o ar ficasse preso em seus pulmões, para tentar gritar e
falar alguma coisa, mas som algum saiu, ficando o grito preso em sua garganta,
fazendo-o sufocar.
Adormeceu e foi acometido por mil
e um pesadelos e, ao acordar na manhã seguinte, viu que havia uma pequena abertura
na porta, por onde passava uma luz fugidia, que parecia lhe chamar. Ele sentiu-se
cego com aquela luz que nunca tinha visto, que lhe entrava pelos olhos, mas que
não lhe iluminava a consciência. Cobriu com a mão os olhos para não ficar
completamente cego e se arrastou usando cotovelos e joelhos, pois de tão fraco
sequer conseguia ficar de pé.
Do lado de fora da cela, ele
olhava de um lado para o outro e não acreditava no que seus olhos viam: um longo
corredor, com portas de celas iguais à sua. Se arrastando, pois não conseguia
andar, ele foi de cela em cela, olhar, chamando com palavras incertas e voz não
humana, por um alguém ou alguma coisa que lhe dissesse onde estava e o que
fazia ali, mas não obteve resposta alguma. Chegando ao final do corredor, viu
que havia uma longa e estreita escada que levava para algum lugar lá no alto,
de onde vinham sons de vozes que ele imaginava serem humanas. Mesmo com medo e se
sentindo fraco, fez um esforço sobre-humano para se por de pé e, vencendo todos
os medos, para dar um primeiro passo. Subia degrau a degrau e a medida que se
aproximava do topo, a luz ficava mais forte a ponto de obriga-lo a subir com os
olhos fechados, e as vozes mais altas, embora ele não conseguisse entender o
que dizia, sabendo apenas que eram muitas vozes, de muitas pessoas, que estavam
ali no alto. Parou inúmeras vezes para tomar fôlego e, enquanto respirava,
sentiu um cheiro desconhecido, límpido, que lhe deixou ainda mais excitado,
desejoso de saber, ver e sentir o que havia lá no alto. Tropeava nos próprios
pés e por vezes chegou a cair e rolar alguns degraus escada abaixo, mas sempre
que parava, que se recuperava, com o coração ameaçando explodir em seu peito,
se punha de pé e continuava a sua subida.
A luz era cada vez mais forte, as
vozes mais altas e o cheiro mais intenso, e este era o que o motivava, apesar
das quedas e dores, do corpo e da alma, a seguirem subindo, pé ante pé, passo
ante passo, em direção àquilo que ele não sabia com o que iria se deparar.
No alto, havia uma porta
parcialmente aberta, através da qual ele mal conseguia ver o que havia do outro
lado. Respirou fundo duas ou três vezes antes de por a mão trêmula sob sua
superfície áspera e empurrá-la. Quando ela se abriu por completo, uma luz
intensa atingiu seus olhos e ele recuou alguns passos e virou o rosto, cobrindo
com as mãos os olhos feridos por aquele jorro de luz. Com os olhos fechados,
feridos, ele subiu os últimos degraus e, com a porta aberta, ele deu um longo e
decidido passo para fora. Foi recebido por um turbilhão de cheiros. Demorou um
longo tempo para seus olhos se acostumarem e conseguirem enxergar alguma coisa
do que havia ao seu redor. Quando, após um longo tempo, conseguiu abrir os
olhos, viu que estava num lugar alto, às suas costas, de onde viera, descia um íngreme
desfiladeiro, e à frente, um imenso planalto. Viu, ao longe, umas pessoas, que
caminhavam tropegamente, tropeçando nas próprias pernas, umas longe das outras,
como se estivessem uma a perseguir a que estava à sua frente enquanto fugia da
que vinha logo atrás. Ele tentou gritar, chamar por uma delas, mas não tinha
força na voz. Resolveu, então, num ato de insensatez, dar um passo depois
outro, correr atrás de tais pessoas e sentir um pouco da liberdade correr pelas
suas veias.
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