Somente quando se olhou no espelho foi que se deu conta de
que sequer se lembrava de seu próprio rosto. Aquele que o fitava nos olhos era
um desconhecido. Aqueles olhos não eram seus, assim como aqueles lábios que não
sorriam. Seu rosto havia se transformado em pedra.
Buscou em
sua memória, mas não conseguiu lembrar como nem quando se tornara pedra, quando
se fechara dentro de si mesmo. Talvez tenha sido há muito tempo, quando lhe
mandaram jogar aquilo que sentia no lixo, e ele, em sua insensatez, jogou, mas
jogou junto todo o resto, tudo o que ele era, livrando-se, assim, não apenas de
sua dor, mas também de quem ele era, de quem sempre foi. Ali, talvez, tenha
sido o primeiro momento, o primeiro real motivo para ele vir a se fechar em
torno de si mesmo, criando aquela carapaça intransponível de pedra que ele
fitava agora diante do espelho.
Tentou se
reconhecer, ali, naquela imagem refletida, mas não conseguiu. Além de não se
lembrar de seu próprio rosto e não conseguir ver qualquer relação entre si
mesmo e o seu reflexo, aquele que o fitava do outro lado do espelho parecia o
ser não-humano. Passou a mão no rosto e viu, no reflexo, uma mão dura e áspera
tocando aquele rosto que não era o seu. Tentou arranhá-lo com as unhas, mas a
sua pele era tão dura que a ponta de seus dedos doeram.
Como pudera
chegar àquele total estado de esquecimento?! Fechou os olhos na tentativa de
retroceder no tempo em busca de explicações para tudo aquilo. Lembrou-se
vagamente de um cheiro, um aroma doce e viu vagas luzes piscando. Lembrou que,
poucos dias depois, quando inspirou fundo em busca daquele reconfortante cheiro
e do brilho daquele sorriso, ele não estava mais ali.
Abriu bem
os olhos, entre surpreso e assustado, quando sentiu uma leve rachadura na sua
pele de pedra. Passou o dedo sobre a rachadura, a fim de quebrar um pedaço da
casca. Viu surgir, pouco a pouco, um pedaço de sua verdadeira pele que ainda
existia por baixo da casca de pedra. Uma pele branca, que não tomava sol, que
não era aquecida há tempos.
As
lembranças lhe vinham escassas, tão lentamente quanto o tempo que demora uma
eternidade para passar. Lembrou-se da imagem de uma flor que vira certa vez
brotar num terreno estéreo, uma flor tão bela, tão delicada no meio, no coração
daquela terra seca e dura. Foi um longo tempo que aquela flor ficou ali,
solitária, até que, não conseguindo mais suportar a aridez do terreno e o peso
da solidão, acabou murchando e morrendo.
Uma
solitária lágrima brotou de seu olho e escorreu por sua face. Por onde passava,
lascas da casca de pedra iam caindo, até que parte de sua verdadeira face ficou
exposta, mas não, ainda, o suficiente para que ainda pudesse se ver como
realmente era.
Veio então,
de supetão, uma lembrança recente, de um momento de frio, de muito frio, de uma
longa noite de inverno em que estava sozinho, desesperado, desejoso de ver o
primeiro raio de sol surgir no horizonte e aquecê-lo, tal como aquece um abraço
num momento de solidão. Percebeu que há tempos não sabia o que era o calor do
sol, muito menos o de um abraço.
Agora
chorava copiosamente, lembrando-se de tudo, dos reais motivos que o fizeram se
tornar aquilo, a vestir e se fechar dentro de si mesmo, daquela pedra. Pouco a
pouco, com as lágrimas que escapavam de seus olhos e escorriam por seu rosto, sua
verdadeira face ia surgindo, e então ele se lembrou de tudo: de quem era, de
tudo por que passara, de todos os pequenos e grandes motivos que o levaram a
chegar até ali, naquele estado, transformado e sentindo-se seguro, protegido
por uma grossa camada, como uma casca de pedra que recobria todo o seu corpo,
mas que na região do peito era mais espessa.
Todo o seu
rosto estava despido da casca de pedra e ele via, finalmente, sua verdadeira e
única face. Seu corpo também fora lavado pelas lágrimas e estava inteiramente
livre dos muros de pedra que o protegiam e mantinham o mundo afastado dele, que
o fazia ficar afastado do mundo. Viu-se de corpo inteiro, transformado não mais
em uma pedra, mas em um homem de carne e osso. Percebeu, no entanto, que nem
todo o seu corpo ficara livre da couraça de pedra: havia uma parte, no peito,
que continuava pedra, uma pedra tão dura que ele, sozinho, não conseguia
quebrar e que, talvez, quisesse mantê-la do jeito que estava: feito pedra, pois
pedra doi menos, sente menos, e foi justamente por que, certa vez, sentiu, que
tinha se tornado pedra por inteiro, e pedra por inteiro ele não desejava voltar
a ser.
Meu caro amigo, como sempre você brinca com as palavras e nos brinda com um texto cheio de emoção e sentimentos reais. Parabéns e sucesso.
ResponderExcluir