Ele abriu a janela e com um amplo gesto convidou o vento a
entrar, mas este, tímido, não veio a princípio, e soprou apenas uma suave brisa
para tocar no rosto do homem. O homem fechou os olhos e se deixou acariciar,
ficou a ouvir o som das palavras que eram jogadas ao vento, que as carregava
que seus braços e as entregava àqueles que desejavam ouvi-las. Eram, por vezes,
palavras ríspidas e em outras apenas palavras jogadas a toa. O homem ouvia
todas, e quanto mais em silêncio ficava, mais forte o vento soprava, passando
de brisa a ventania, de ventania a vendaval, carregando tantas palavras e
jogando-as no rosto do homem, que, impassível, mantinha-se em silêncio e
completamente imóvel.
Lembrou-se
de tantos anos antes, quando fora levado para onde não queria, do silêncio que
não tinha, das inúmeras noites em claro que passara marchando em terreno
acidentado, com o corpo dolorido, com a chuva inclemente a cair sobre sua
cabeça e do som dos passos pesados a castigarem o chão. Nenhuma palavra, nessas
noites, era proferida, no entanto, não havia silêncio algum. Ele podia mesmo
ouvir os pensamentos de cada um daqueles que estavam ao seu lado apenas
observando suas feições, sues olhares perdidos ao longe, suas tristezas por
terem, como ele, sido obrigados a estar ali. Todos foram pegos nas primeiras
horas da manhã, recrutados contra suas vontades, retirados do aconchego de seus
lares, ouvindo as tristes palavras de despedida e as lágrimas de suas mães e o
incentivo dos pais e vendo no rosto dos irmãos mais novos, que não entendiam o
que se passava, a admiração por estarem indo lutar na guerra que elas não
conseguiam entender bem do que se tratava. Falava-se em guerra, mas, até aquela
manhã, ela parecia algo distante, irreal, como se estivesse a acontecer em um
outro mundo, travada por povos desconhecidos, que nada tinha a ver com nenhum
deles. Quanta ilusão! A guerra se aproximava e vinha caminhando a largos
passos, e logo chegou àquela cidade que ficava tão distante e isolada de tudo e
de todos, àquela cidade que vivia eternamente em paz. Primeiro foram rumores,
nada mais que meros rumores que uma ou outra pessoa ouviu e transmitiu a outro,
a outro e a outro. Mas esses rumores logo foram se confirmando, então todos
souberam que a guerra tinha chegado. A paz do lugar logo deu lugar a um
sentimento de apreensão que pairava no ar. Todos temiam a aproximação, mas, na
ingenuidade reinante de cidades pequenas como aquela, acreditavam que iria
passar ao lado, e não iria mudar muito da rotina e vida daqueles que ali
viviam.
A vida
mudou drástica e totalmente naquela manhã quando o sol mal nascera,
principalmente para aquele jovem que mal havia completado seus dezoito anos. Ouvira
falar da guerra e conversas sussurradas entre algumas pessoas, mas procurava se
manter alheio. Não sabia quem lutara por quem nem pelo quê, só sabia que
daquela guerra não queria fazer parte. Queria lutar sua própria vida e vencer
nela, e não por algo ou por alguém que não lhe dizia respeito. Naquela noite
ouvira rumores sobre um destacamento que se aproximava da cidade, mas fora,
mesmo assim, dormir tranquilamente. Não sonhou naquela noite, e fora acordado
junto com os primeiros raios de sol que despontavam no horizonte quando bateram
violentamente na porta de sua casa. Eram eles, do exército, que vinham
recrutá-lo, retira-lo de seu lar, de sua vida, e levá-lo para um lugar
desconhecido, para ficar ao lado de desconhecidos e lutar por algo que ele
desconhecia. Não podia fugir, não podia se esconder, pois todos sabiam que ele
estava ali, e não adiantava as lágrimas e súplicas de sua mãe, implorando que
aqueles homens não o levassem, eles nada ouviam, pois foram treinados para nada
ouvir. Não precisou ser arrastado, como ficou sabendo que alguns de seus
companheiros de marcha tiveram que ser; deixou que seus passos o levassem para
onde teria que ir. Quando saiu de casa, que passou pelo portão, ainda olhou
para trás uma última vez, para manter bem vívida na memória a imagem de sua
mãe, do pai e dos irmãos.
Horas ininterruptas
de um barulho infernal de passos pesados, atravessando pântanos, subindo serras
e descendo íngremes ladeiras numa marcha sem fim, tendo de carregar uma pesada
mochila nas costas e os armamentos que não sabia usar, e só após horas, ou dias,
ou semanas, ele não sabia precisar, pois havia perdido completamente a noção do
tempo, receberam a ordem de parar, e iriam armar o acampamento ali, no alto
daquela serra, onde poderiam ter uma visão completa de tudo ao redor. Ali, onde
tudo, em outra ocasião, inspiraria paz, podia-se sentir o clima da guerra e
seus silenciosos barulhos. Era fim de tarde e o céu sobre suas cabeças estava
fechado, mas a chuva ao menos tinha dado uma trégua. Receberam permissão /
ordem de descansar, o que, dada a forma como foram todos que estavam ali
retirados de casa e pela longa e exaustiva marcha, ninguém conseguiu.
Ali, no
alto daquela serra, onde tudo ao redor era silêncio, onde nunca soprava vento
algum, naquele imenso acampamento militar, seria seu lar, segundo palavras do
capitão do destacamento; ali iriam ser treinados e aprenderiam as artes, os
valores e a importância da guerra.
Ali o
destacamento passou dias e noites com os novos recrutados aprendendo e os
antigos na expectativa da próxima batalha que se aproximava sorrateiramente. Mas
não houve tempo para os neófitos aprenderem e os antigos esperarem, pois o ataque
do inimigo veio de repente, quando ninguém estava preparado.
Tiros,
soltados em fuga sem saber o que fazer nem como reagir, gritos e gemidos e
ordens desconexas. Os experientes não sabiam o que fazer e os novos muito
menos. Houve uma verdadeira chacina e aquele destacamento fora esmagado sem
qualquer piedade por parte do inimigo. Somente um homem sobreviveu, pois fora o
único a estar em silêncio na hora em que o inimigo se aproximara, pois fora o
único a ouvir os sons que o vento trazia. Ainda tentou correr de volta ao
acampamento, pois se encontrava um pouco afastado deste na hora em que ouviu as
primeiras vozes, que entendeu o primeiro alerta, mas não teve tempo – o inimigo
fora mais rápido que ele. Ouviu e viu os companheiros que mal sabia o nome
sendo mortos um a um sem a menor piedade. Quis, mas sabia que não podia fazer nada.
Fechou os olhos e tapou os ouvidos para não ver e ouvir nada. Quando tudo
acabou, fez-se silêncio em tudo ao redor, exceto pelos seus soluços baixos, que
ele tentava abafar para não ser descoberto. Viu o inimigo buscar por coisas de
valor entre os destroços do acampamento e depois irem, soldado a soldado,
embora. Ficou só no alto daquela serra, vendo o inimigo se afastar, e ele ali,
sozinho, entre tantos corpos e destruição, no mais completo e profundo
silêncio. Nem ele mesmo soube precisar quanto tempo ficou ali. Foi despertado
por um vento que soprou forte e bateu em cheio no seu rosto, com que o chamando
de volta a razão.
Fez, dessa
vez sozinho, o caminho que havia feito sabe-se lá quantos dias antes. Sua roupa
estava rasgada e suja, seu corpo encharcado de suor e faminto, mas ele continuou
sua jornada de retorno à casa. Por onde passou viu as pequenas cidades, tão
suas conhecidas, dizimadas. Não encontrou uma única pessoa durante todo o seu
caminho de volta. Dormia pouco, quando seu corpo clamava por um curto descanso,
comia somente o que por ventura encontrasse no caminho. Assim, após um longo
tempo, ele voltou ao local onde antes estivera a sua casa, que, como toda a
cidade, fora destruída. Deixou-se, então, cair no chão e chorou todas as
lágrimas que vinha acumulando desde o dia em que fora arrancado do seio de seu
lar.
Ficou uma
eternidade ali, chorando, e depois que as lágrimas cessaram, dormiu, e quando
acordou, continuou deitado, com o desejo de que o tempo passasse depressa. Mas o
Tempo segue seu próprio curso, e não há como apressá-lo o retardá-lo, ele
apenas segue conforme seu tempo.
Agora, ali,
parado, em frente a janela, sendo acariciado pelo vento, ele se lembrava disso
tudo, de tudo pelo que passara na vida. Já era um homem velho, sem o vigor
físico que ostentara outrora, mas que continuava, mesmo passado tanto tempo, a,
com a alma leve e no mais completo silêncio, ouvir o vento, a captar as
palavras que nem sempre são inteligíveis para todos e a agradecer pelo vento,
que lhe disse, naquela fatídica noite, para se afastar, e a maldizer pela
guerra sem sentido, que destruiu tudo e todos, que deixou a vida de tantos no
mais completo vazio.