terça-feira, 25 de dezembro de 2012

O vento e a guerra



Ele abriu a janela e com um amplo gesto convidou o vento a entrar, mas este, tímido, não veio a princípio, e soprou apenas uma suave brisa para tocar no rosto do homem. O homem fechou os olhos e se deixou acariciar, ficou a ouvir o som das palavras que eram jogadas ao vento, que as carregava que seus braços e as entregava àqueles que desejavam ouvi-las. Eram, por vezes, palavras ríspidas e em outras apenas palavras jogadas a toa. O homem ouvia todas, e quanto mais em silêncio ficava, mais forte o vento soprava, passando de brisa a ventania, de ventania a vendaval, carregando tantas palavras e jogando-as no rosto do homem, que, impassível, mantinha-se em silêncio e completamente imóvel.
            Lembrou-se de tantos anos antes, quando fora levado para onde não queria, do silêncio que não tinha, das inúmeras noites em claro que passara marchando em terreno acidentado, com o corpo dolorido, com a chuva inclemente a cair sobre sua cabeça e do som dos passos pesados a castigarem o chão. Nenhuma palavra, nessas noites, era proferida, no entanto, não havia silêncio algum. Ele podia mesmo ouvir os pensamentos de cada um daqueles que estavam ao seu lado apenas observando suas feições, sues olhares perdidos ao longe, suas tristezas por terem, como ele, sido obrigados a estar ali. Todos foram pegos nas primeiras horas da manhã, recrutados contra suas vontades, retirados do aconchego de seus lares, ouvindo as tristes palavras de despedida e as lágrimas de suas mães e o incentivo dos pais e vendo no rosto dos irmãos mais novos, que não entendiam o que se passava, a admiração por estarem indo lutar na guerra que elas não conseguiam entender bem do que se tratava. Falava-se em guerra, mas, até aquela manhã, ela parecia algo distante, irreal, como se estivesse a acontecer em um outro mundo, travada por povos desconhecidos, que nada tinha a ver com nenhum deles. Quanta ilusão! A guerra se aproximava e vinha caminhando a largos passos, e logo chegou àquela cidade que ficava tão distante e isolada de tudo e de todos, àquela cidade que vivia eternamente em paz. Primeiro foram rumores, nada mais que meros rumores que uma ou outra pessoa ouviu e transmitiu a outro, a outro e a outro. Mas esses rumores logo foram se confirmando, então todos souberam que a guerra tinha chegado. A paz do lugar logo deu lugar a um sentimento de apreensão que pairava no ar. Todos temiam a aproximação, mas, na ingenuidade reinante de cidades pequenas como aquela, acreditavam que iria passar ao lado, e não iria mudar muito da rotina e vida daqueles que ali viviam.
            A vida mudou drástica e totalmente naquela manhã quando o sol mal nascera, principalmente para aquele jovem que mal havia completado seus dezoito anos. Ouvira falar da guerra e conversas sussurradas entre algumas pessoas, mas procurava se manter alheio. Não sabia quem lutara por quem nem pelo quê, só sabia que daquela guerra não queria fazer parte. Queria lutar sua própria vida e vencer nela, e não por algo ou por alguém que não lhe dizia respeito. Naquela noite ouvira rumores sobre um destacamento que se aproximava da cidade, mas fora, mesmo assim, dormir tranquilamente. Não sonhou naquela noite, e fora acordado junto com os primeiros raios de sol que despontavam no horizonte quando bateram violentamente na porta de sua casa. Eram eles, do exército, que vinham recrutá-lo, retira-lo de seu lar, de sua vida, e levá-lo para um lugar desconhecido, para ficar ao lado de desconhecidos e lutar por algo que ele desconhecia. Não podia fugir, não podia se esconder, pois todos sabiam que ele estava ali, e não adiantava as lágrimas e súplicas de sua mãe, implorando que aqueles homens não o levassem, eles nada ouviam, pois foram treinados para nada ouvir. Não precisou ser arrastado, como ficou sabendo que alguns de seus companheiros de marcha tiveram que ser; deixou que seus passos o levassem para onde teria que ir. Quando saiu de casa, que passou pelo portão, ainda olhou para trás uma última vez, para manter bem vívida na memória a imagem de sua mãe, do pai e dos irmãos.
            Horas ininterruptas de um barulho infernal de passos pesados, atravessando pântanos, subindo serras e descendo íngremes ladeiras numa marcha sem fim, tendo de carregar uma pesada mochila nas costas e os armamentos que não sabia usar, e só após horas, ou dias, ou semanas, ele não sabia precisar, pois havia perdido completamente a noção do tempo, receberam a ordem de parar, e iriam armar o acampamento ali, no alto daquela serra, onde poderiam ter uma visão completa de tudo ao redor. Ali, onde tudo, em outra ocasião, inspiraria paz, podia-se sentir o clima da guerra e seus silenciosos barulhos. Era fim de tarde e o céu sobre suas cabeças estava fechado, mas a chuva ao menos tinha dado uma trégua. Receberam permissão / ordem de descansar, o que, dada a forma como foram todos que estavam ali retirados de casa e pela longa e exaustiva marcha, ninguém conseguiu.
            Ali, no alto daquela serra, onde tudo ao redor era silêncio, onde nunca soprava vento algum, naquele imenso acampamento militar, seria seu lar, segundo palavras do capitão do destacamento; ali iriam ser treinados e aprenderiam as artes, os valores e a importância da guerra.
            Ali o destacamento passou dias e noites com os novos recrutados aprendendo e os antigos na expectativa da próxima batalha que se aproximava sorrateiramente. Mas não houve tempo para os neófitos aprenderem e os antigos esperarem, pois o ataque do inimigo veio de repente, quando ninguém estava preparado.
            Tiros, soltados em fuga sem saber o que fazer nem como reagir, gritos e gemidos e ordens desconexas. Os experientes não sabiam o que fazer e os novos muito menos. Houve uma verdadeira chacina e aquele destacamento fora esmagado sem qualquer piedade por parte do inimigo. Somente um homem sobreviveu, pois fora o único a estar em silêncio na hora em que o inimigo se aproximara, pois fora o único a ouvir os sons que o vento trazia. Ainda tentou correr de volta ao acampamento, pois se encontrava um pouco afastado deste na hora em que ouviu as primeiras vozes, que entendeu o primeiro alerta, mas não teve tempo – o inimigo fora mais rápido que ele. Ouviu e viu os companheiros que mal sabia o nome sendo mortos um a um sem a menor piedade. Quis, mas sabia que não podia fazer nada. Fechou os olhos e tapou os ouvidos para não ver e ouvir nada. Quando tudo acabou, fez-se silêncio em tudo ao redor, exceto pelos seus soluços baixos, que ele tentava abafar para não ser descoberto. Viu o inimigo buscar por coisas de valor entre os destroços do acampamento e depois irem, soldado a soldado, embora. Ficou só no alto daquela serra, vendo o inimigo se afastar, e ele ali, sozinho, entre tantos corpos e destruição, no mais completo e profundo silêncio. Nem ele mesmo soube precisar quanto tempo ficou ali. Foi despertado por um vento que soprou forte e bateu em cheio no seu rosto, com que o chamando de volta a razão.
            Fez, dessa vez sozinho, o caminho que havia feito sabe-se lá quantos dias antes. Sua roupa estava rasgada e suja, seu corpo encharcado de suor e faminto, mas ele continuou sua jornada de retorno à casa. Por onde passou viu as pequenas cidades, tão suas conhecidas, dizimadas. Não encontrou uma única pessoa durante todo o seu caminho de volta. Dormia pouco, quando seu corpo clamava por um curto descanso, comia somente o que por ventura encontrasse no caminho. Assim, após um longo tempo, ele voltou ao local onde antes estivera a sua casa, que, como toda a cidade, fora destruída. Deixou-se, então, cair no chão e chorou todas as lágrimas que vinha acumulando desde o dia em que fora arrancado do seio de seu lar.
            Ficou uma eternidade ali, chorando, e depois que as lágrimas cessaram, dormiu, e quando acordou, continuou deitado, com o desejo de que o tempo passasse depressa. Mas o Tempo segue seu próprio curso, e não há como apressá-lo o retardá-lo, ele apenas segue conforme seu tempo.
            Agora, ali, parado, em frente a janela, sendo acariciado pelo vento, ele se lembrava disso tudo, de tudo pelo que passara na vida. Já era um homem velho, sem o vigor físico que ostentara outrora, mas que continuava, mesmo passado tanto tempo, a, com a alma leve e no mais completo silêncio, ouvir o vento, a captar as palavras que nem sempre são inteligíveis para todos e a agradecer pelo vento, que lhe disse, naquela fatídica noite, para se afastar, e a maldizer pela guerra sem sentido, que destruiu tudo e todos, que deixou a vida de tantos no mais completo vazio.

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