Ele sentia suas forças se acabando, sua vida escoando por
entre seus dedos. Olhava ao redor em busca de algo em que pudesse se agarrar e
se agarrar aquele fiapo de vida que ainda lhe restava. Sempre vivera de forma a
não se preocupar com o dia de amanhã, sem se poupar, preocupando-se com só e
unicamente viver cada momento, cada instante, como se este fosse o último.
Viveu últimos dias da vida desde o momento que assim deveria vivê-los, e agora
estava ali, no fim da vida, perguntando-se o que tinha acontecido, o que tinha
feito da vida, para que ela estivesse se acabando, para que tivesse se passado
de forma tão rápida. Não que sua vida tivesse sido curta, muito pelo contrário;
tivera uma vida longa, vivida intensamente cada instante, no entanto, ainda
restava tanto a se ver, provar o gosto, ouvir os sons, sentir o cheiro e o
toque. Seriam necessárias dez vidas para se viver tudo aquilo que gostaria.
Estava
sozinho naquele quarto, a janela estava aberta, deixando entrar uma suave brisa
de fim de tarde. Tudo ao seu redor era silêncio, com a exceção do toque dos
dedos do vento ao balançar o suave tecido das cortinas, fazendo-o bailar.
Respirava devagar, mas fundo, sentindo, a cada inspiração, pela última vez os
cheiros da vida. Com os olhos fechados ele via tudo que vivera até ali, todos
os nasceres do sol, todas as luas cheia que contemplara, todas as estrelas que
contara e todos os sorrisos que vira, como a vida passando em um flash back. Fora tão feliz em vida, mas,
mesmo assim, a sentia, naquele momento, tão vazia, como se nada tivesse feito,
como se não tivesse usufruído o suficiente, como se não tivesse vivido.
Sentiu-se triste e uma única, solitária e dolorida lágrima escapou de seu olho
e banhou sua face, e só então abriu os olhos e viu, num canto, jogado, um álbum
de fotografias velho, esquecido. Se ao menos ainda lhe restasse alguma força,
iria pegá-lo, só para poder reviver cada um daqueles momentos que foram
registrados em fotos que já deveriam estar desbotadas, mas que, ainda assim,
resguardavam todas as vívidas cores do momento. Olhou para o outro lado e viu
objetos há tempos esquecidos que lhe foram dados por amigos nas inúmeras
viagens que fizera. Olhou para a estante e viu os inúmeros livros que estavam
guardados e lembrou-se das histórias que vivera, dos vários mundos que
visitara, sendo conduzido pelas mãos e palavras de um autor, seguro só e
unicamente por sua imaginação, que lhe fazia flutuar num mundo de fantasia, por
mais que tivesse uma consciência, uma vaga lembrança de que seus pés
continuavam presos e firmes num mundo real, na vida real.
Sorriu ao
constatar que mesmo não sendo possível viver as dez necessárias vidas que
gostaria, viveu uma vida longa, intensa e feliz. Lembrou-se do dia anterior,
quando sentiu que só lhe restavam poucas horas de vida, quando, mesmo tendo
consciência disso, da proximidade do fim, pediu que todos se retirassem, que o
deixassem ali, só, para viver seus últimos momentos de forma egoística consigo
mesmo, apenas. Lembrou e chorou de cada lembrança de cada despedida, das
lágrimas sem fim de cada filho, de cada amigo, de cada neto, de cada um
daqueles que estavam ali, que vinham até ele, diziam palavras de despedida, o
agradeciam e iam embora. Lembrou e sorriu de volta para cada sorriso de cada
uma dessas pessoas, dos sorrisos sinceros, apesar das lágrimas que havia nos
olhos de cada uma. Lembrou-se de cada palavra dita e também das não ditas, que
foram mencionadas apenas por olhares, sorrisos, lágrimas e gestos. Sorriu e
chorou ao lembrar-se disso tudo, principalmente quando se lembrou da última
pessoa a sair da casa, seu filho mais velho, quando ele o olhou uma última vez
e, com os olhos cheios de lágrimas, sorriu e o agradeceu, e fechou a porta.
Estava
perto, muito perto, ele podia sentir. Não tinha medo, pois, embora quisesse se
agarrar com todas as suas forças ao tempo de vida que ainda lhe restava, estava
preparado para o que estava por vir, pois, no fim das contas, no fim de tudo,
aquele momento que se avizinhava era a única certeza a que todos nós, humanos,
podemos ter em vida...
Agora, cada
respiração era a última. Ele fechou os olhos e deixou que o final do filme de
sua vida passasse diante de si. Reviu numa fração de segundos toda a sua
infância, sua adolescência, seu primeiro amor, seus primeiros sonhos, suas
primeiras realizações, suas primeiras felicidades, seu primeiro luar, seu
primeiro amanhecer, seu primeiro banho de mar, a primeira vez em que sentiu
frio, a primeira vez em que sentiu o calor de um abraço, a primeira vez em que se
entregou de corpo e alma e a primeira vez em que sentiu todo o ardor de uma
entrega, de uma paixão. Reviu e reviveu cada uma daquelas primeiras vezes e
sorriu, um último sorriso de plena, completa e simples felicidade, ao ter a
plena, total e completa consciência de que viveu e usufruiu de tudo aquilo que
a vida lhe dera.
Com os
olhos fechados e um sorriso estampado no rosto, ele se deixou levar lentamente,
sendo guiado por uma mão invisível, de toque suave mas firme, que o conduzia a
um infinito, a um desconhecido, a uma eternidade a que ele não temia, pois
findara essa vida tendo uma única certeza, a de que vivera e de que deixara um
legado, a de que deixara ecoando muitos sorrisos e lágrimas de muitos momentos
vividos.
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