Um homem chegava apressado à casa de seus pais. Já se
preparava para dormir quando recebeu aquele telefonema de sua mãe, que estava
desesperada, pois seu pai havia sentido uma dor súbita no peito enquanto
assistia a um telejornal e estava desacordado. Preocupado, ele não pensou em
nada e saiu para socorrer o pai. Era médico recém formado e já trabalhava num
importante hospital, mas se sentia impotente, por não saber como reagiria ao
ver o seu próprio pai sem sentidos, estirado numa cama.
Não fazia
nem uma semana que os dois, pai e filho, se divertiam, torceram, vibraram e
acabaram chorando ao assistirem a um jogo de futebol, e agora, seu pai havia
passado mal subitamente e talvez aquela hora já fosse tarde demais para fazer
alguma coisa para salva-lo, pensava o homem. “Meu pai sempre teve uma saúde de
ferro e sequer gripe ele pegava, de tão forte que sempre foi”, falava sozinho
enquanto dirigia. Já tinha ouvido inúmeras histórias de pessoas que, como seu pai,
nunca apresentaram nenhum problema de saúde a vida inteira e que, subitamente,
tiveram ataques súbitos e mal puderam ser socorridos. Tinha, inclusive,
atendido inúmeros pacientes em casos semelhantes.
- Mas isso
não pode e não vai acontecer comigo. Não com o meu pai – dizia ele. Aquelas palavras eram como palavras mágicas,
que ele falava sem parar, como se com elas pudessem afastar qualquer mal que
pudesse ter acontecido ou que viesse a acontecer com seu pai.
Parou o
carro em cima da calçada e bateu a porta com força ao descer, correndo em
direção a casa dos pais. Tinha as chaves da casa, mas, em sua pressa, havia
esquecido em sua casa. Batia na porta com tanta força quase a fez vir abaixo,
mas não conseguindo derrubá-la, teve que esperar sua mãe vir abri-la. Foram longos
aqueles minutos de espera; minutos que poderiam valer a vida de seu pai.
Sua mãe, ao
abrir a porta, ele percebeu, estava tremendo, pálida.
- Onde está
o pai?
- Lá em
cima, no quarto.
Ele então
saiu em disparada, com sua mãe quase pisando em seus tornozelos. Subia os
degraus daquela escada de dois em dois; aquela escada tão sua conhecida, onde
vivera toda a sua vida; aquela casa que sempre teve o cheiro de seu verdadeiro
lar. E agora, o medo, ao se dar conta de que algo de grave havia acontecido com
seu pai, algo que quebraria toda a harmonia existente em sua vida.
A porta do
quarto de seus pais estava aberta; aquela mesma porta tão sua conhecida, em que
batia sempre que acordava de madrugada com medo. Agora, tantos anos depois,
sentia medo de entrar naquele quarto e ver seu pai inconsciente deitado naquela
grande cama.
- Pai? –
chamou ele, sem coragem de cruzar a soleira da porta. Aquele senhor, deitado,
de cabelo grisalho, não se mexia. Ele via o quase imperceptível subir e descer
do peito do outro enquanto respirava.
Tomando coragem,
ele deu o primeiro passo em direção ao pai.
- O que
houve com ele, mãe? – perguntou à mulher, que estava às suas costas.
- Ele
estava aqui em cima, assistindo, como todo dia faz, o telejornal... Foi de
repente. Ele soltou um grito tão alto, de uma dor tão funda, que deve ter sido
ouvido por todo o bairro. Quando subi para socorrê-lo, o vi aí, do jeito que
está, deitado, inconsciente – falou ela, e começou a chorar. Aquele homem era o
amor de sua vida. Com ele viveu intensamente sua paixão da juventude, o amor
dos primeiros anos de casado; com ele teve seu único filho. Juntos cuidaram da
educação e viram crescer o menino que desde cedo se mostrava propenso à
medicina, tanto que passou em seu primeiro vestibular, se tornara o primeiro da
classe e agora estava formado, trabalhando, tido como um dos melhores médicos
de sua especialidade no país. E agora, esse homem, com quem viveram tão
maravilhosos e tão longos anos, estava ali, deitado.
O filho
deixou de ser filho e, naquele instante, passou a ser só e unicamente médico. Procurou
pelos sinais vitais do pai, contou os batimentos cardíacos, mediu a pressão
sanguínea.
- Estranho!
– falou.
- O que é
estranho, meu filho. Não tenha medo. Eu sou forte. Não esconda nada de mim. O que
seu pai teve? Ele vai sobreviver?
- Estranho
por que ele me parece bem. Seus batimentos cardíacos estão normais e sua
pressão também – falou o filho, pegando a mão do pai.
Mãe e filho
então ficaram ali, sentindo-se impotentes, mas esperando que o homem acordasse.
- Não acha
melhor levá-lo a um hospital?
- Não, mãe.
Ele vai ficar bem.
Aquela foi
uma noite longa e silenciosa, com os dois ali, ao pé da cama, sem dizerem uma
única palavra.
Já era
quase meia-noite quando o homem começou a recobrar a consciência.
- Pai?
- Amor?
O homem
abriu lentamente seus olhos, demorando a se acostumar com a claridade do quarto
àquela hora da noite.
- Pai, o
que o senhor teve? Se sente bem? – perguntou, não o filho, mas o médico.
- Não sei. Estou
tonto e sinto uma dor no peito, como uma angústia. Sei que tudo está chegando
ao fim, que não consigo mais viver.
- Não fale
assim, pai – falou o filho, e mulher, ao ouvir aquelas palavras do marido,
começou a chorar.
- Falo sim,
filho. É o fim que é iminente... Não há como escapar. E eu não quero mais viver
para ver isso, do jeito que está. É demais para mim. É demais para meu coração.
- Mas o que
houve, pai, para o senhor está falando isso, assim? O senhor me parece
perfeitamente bem. Seu coração bate em ritmo certo...
- Você
entenderia se soubesse a gravidade de tudo que se passa, filho... você
entenderia...
O pai
falava por enigmas, é verdade, mas era claro que algo o perturbava. Ele parecia
fraco e abatido, como se não suas forças, mas todas as suas esperanças tivessem
lhe sido roubadas subitamente.
- O que
houve, pai, me fale, por favor.
O pai, com
olhar sofrido, olhou dentro dos olhos do filho.
- Eu não
sabia. Eu não tinha percebido. Só estava acompanhando por alto o andamento das
coisas. Só dei pela gravidade de tudo, pelo iminente fim, ontem, quando
assistia ao telejornal...
Parou de
falar e colocou a mão sobre o peito, como se só em lembrar daquilo, uma forte
dor percorria por todo seu corpo.
- Não fale
mais, querido. Descanse.
- Não. Eu preciso
falar. Meu filho precisa saber de tudo, através de mim, agora, caso contrário
pode ser muito tarde, e ele pode sofrer muito mais, como eu sofri.
Todos ficaram
em silêncio, enquanto o pai tomava fôlego e se recuperava da dor provocada
pelas lembranças.
- Eu estava
ontem a noite, assistindo televisão. Era como se já soubesse, já sentisse o que
iria acontecer. As primeiras notícias foram as de sempre, de algum escândalo de
corrupção e da abertura de mais uma CPI, ou seja, nada de mais. Sempre vai
haver notícias de corrupção que nunca vão dar em nada e sempre serão abertas
mais CPIs que irão resultar em mais nada ainda. Durante o intervalo, senti uma
dor no peito, um prelúdio para o que estava para acontecer. Começaram as
notícias esportivas. Eram as mesmas de sempre, nada de mais, até que começaram
a falar do Campeonato Brasileiro. Quando falaram a classificação foi que eu
senti aquela dor, que de tão forte, me fez
gritar, e desmaiei.
- Mas o que
a classificação do Campeonato Brasileiro tem a ver com a sua dor e o seu
desmaio, pai? – perguntou o filho.
O pai
balançou a cabeça, avaliando se o filho teria forças suficientes para aguentar
aquela dor, aquele decepção, ao saber da verdade, ao constatar o fim iminente
de tudo de bom que ele um dia conhecera no mundo.
Respirou fundo
algumas vezes, segurou com firmeza a mão do filho e o olhou não nos olhos, mas
no fundo da alma.
- Filho,
Corinthians e Flamengo estão na liderança do Campeonato Brasileiro. Corinthians
é líder, Flamengo, vice. Isso é o fim iminente de tudo, do mundo, de tudo que
existiu e que existe de bom numa vida, no esporte.
O filho
soltou a mão do pai e cobriu os ouvidos.
- Não pode
ser... Não pode ser... – dizia ele, desesperado.
- Essa é a
dura verdade, filho. Por isso digo que esse é o fim iminente de tudo que já
existiu de bom. Talvez até depois disso, se tudo acabar do jeito que está, nada
mais de bom irá haver no mundo, e até as rosas deixarão de florescer na
primavera. Os pássaros não vão mais cantar, saldando um novo dia todas as
manhã. É o fim de tudo, filho... é o fim...
O filho
então sentiu uma súbita dor no peito e uma fraqueza nas pernas. Tentou resistir,
mas não conseguiu, e caiu no chão, inconsciente. Pai e mãe foram socorrê-lo, a
mãe desesperada, gritando, e o pai sabendo exatamente o que o filho sentia
naquele momento, se perguntando se tinha agido corretamente ao falar aquilo ao
filho, sem ao menos prepará-lo para tão forte notícia. Mas ele não podia
enganar o filho. Aquilo realmente era o fim, e não havia para onde ir, nem onde
se esconder. O fim era iminente, e não havia qualquer chance de esperança.
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