domingo, 14 de agosto de 2011

o fim iminente...

Um homem chegava apressado à casa de seus pais. Já se preparava para dormir quando recebeu aquele telefonema de sua mãe, que estava desesperada, pois seu pai havia sentido uma dor súbita no peito enquanto assistia a um telejornal e estava desacordado. Preocupado, ele não pensou em nada e saiu para socorrer o pai. Era médico recém formado e já trabalhava num importante hospital, mas se sentia impotente, por não saber como reagiria ao ver o seu próprio pai sem sentidos, estirado numa cama.
            Não fazia nem uma semana que os dois, pai e filho, se divertiam, torceram, vibraram e acabaram chorando ao assistirem a um jogo de futebol, e agora, seu pai havia passado mal subitamente e talvez aquela hora já fosse tarde demais para fazer alguma coisa para salva-lo, pensava o homem. “Meu pai sempre teve uma saúde de ferro e sequer gripe ele pegava, de tão forte que sempre foi”, falava sozinho enquanto dirigia. Já tinha ouvido inúmeras histórias de pessoas que, como seu pai, nunca apresentaram nenhum problema de saúde a vida inteira e que, subitamente, tiveram ataques súbitos e mal puderam ser socorridos. Tinha, inclusive, atendido inúmeros pacientes em casos semelhantes.
            - Mas isso não pode e não vai acontecer comigo. Não com o meu pai – dizia ele. Aquelas palavras eram como palavras mágicas, que ele falava sem parar, como se com elas pudessem afastar qualquer mal que pudesse ter acontecido ou que viesse a acontecer com seu pai.
            Parou o carro em cima da calçada e bateu a porta com força ao descer, correndo em direção a casa dos pais. Tinha as chaves da casa, mas, em sua pressa, havia esquecido em sua casa. Batia na porta com tanta força quase a fez vir abaixo, mas não conseguindo derrubá-la, teve que esperar sua mãe vir abri-la. Foram longos aqueles minutos de espera; minutos que poderiam valer a vida de seu pai.
            Sua mãe, ao abrir a porta, ele percebeu, estava tremendo, pálida.
            - Onde está o pai?
            - Lá em cima, no quarto.
            Ele então saiu em disparada, com sua mãe quase pisando em seus tornozelos. Subia os degraus daquela escada de dois em dois; aquela escada tão sua conhecida, onde vivera toda a sua vida; aquela casa que sempre teve o cheiro de seu verdadeiro lar. E agora, o medo, ao se dar conta de que algo de grave havia acontecido com seu pai, algo que quebraria toda a harmonia existente em sua vida.
            A porta do quarto de seus pais estava aberta; aquela mesma porta tão sua conhecida, em que batia sempre que acordava de madrugada com medo. Agora, tantos anos depois, sentia medo de entrar naquele quarto e ver seu pai inconsciente deitado naquela grande cama.
            - Pai? – chamou ele, sem coragem de cruzar a soleira da porta. Aquele senhor, deitado, de cabelo grisalho, não se mexia. Ele via o quase imperceptível subir e descer do peito do outro enquanto respirava.
            Tomando coragem, ele deu o primeiro passo em direção ao pai.
            - O que houve com ele, mãe? – perguntou à mulher, que estava às suas costas.
            - Ele estava aqui em cima, assistindo, como todo dia faz, o telejornal... Foi de repente. Ele soltou um grito tão alto, de uma dor tão funda, que deve ter sido ouvido por todo o bairro. Quando subi para socorrê-lo, o vi aí, do jeito que está, deitado, inconsciente – falou ela, e começou a chorar. Aquele homem era o amor de sua vida. Com ele viveu intensamente sua paixão da juventude, o amor dos primeiros anos de casado; com ele teve seu único filho. Juntos cuidaram da educação e viram crescer o menino que desde cedo se mostrava propenso à medicina, tanto que passou em seu primeiro vestibular, se tornara o primeiro da classe e agora estava formado, trabalhando, tido como um dos melhores médicos de sua especialidade no país. E agora, esse homem, com quem viveram tão maravilhosos e tão longos anos, estava ali, deitado.
            O filho deixou de ser filho e, naquele instante, passou a ser só e unicamente médico. Procurou pelos sinais vitais do pai, contou os batimentos cardíacos, mediu a pressão sanguínea.
            - Estranho! – falou.
            - O que é estranho, meu filho. Não tenha medo. Eu sou forte. Não esconda nada de mim. O que seu pai teve? Ele vai sobreviver?
            - Estranho por que ele me parece bem. Seus batimentos cardíacos estão normais e sua pressão também – falou o filho, pegando a mão do pai.
            Mãe e filho então ficaram ali, sentindo-se impotentes, mas esperando que o homem acordasse.
            - Não acha melhor levá-lo a um hospital?
            - Não, mãe. Ele vai ficar bem.
            Aquela foi uma noite longa e silenciosa, com os dois ali, ao pé da cama, sem dizerem uma única palavra.
            Já era quase meia-noite quando o homem começou a recobrar a consciência.
            - Pai?
            - Amor?
            O homem abriu lentamente seus olhos, demorando a se acostumar com a claridade do quarto àquela hora da noite.
            - Pai, o que o senhor teve? Se sente bem? – perguntou, não o filho, mas o médico.
            - Não sei. Estou tonto e sinto uma dor no peito, como uma angústia. Sei que tudo está chegando ao fim, que não consigo mais viver.
            - Não fale assim, pai – falou o filho, e mulher, ao ouvir aquelas palavras do marido, começou a chorar.
            - Falo sim, filho. É o fim que é iminente... Não há como escapar. E eu não quero mais viver para ver isso, do jeito que está. É demais para mim. É demais para meu coração.
            - Mas o que houve, pai, para o senhor está falando isso, assim? O senhor me parece perfeitamente bem. Seu coração bate em ritmo certo...
            - Você entenderia se soubesse a gravidade de tudo que se passa, filho... você entenderia...
            O pai falava por enigmas, é verdade, mas era claro que algo o perturbava. Ele parecia fraco e abatido, como se não suas forças, mas todas as suas esperanças tivessem lhe sido roubadas subitamente.
            - O que houve, pai, me fale, por favor.
            O pai, com olhar sofrido, olhou dentro dos olhos do filho.
            - Eu não sabia. Eu não tinha percebido. Só estava acompanhando por alto o andamento das coisas. Só dei pela gravidade de tudo, pelo iminente fim, ontem, quando assistia ao telejornal...
            Parou de falar e colocou a mão sobre o peito, como se só em lembrar daquilo, uma forte dor percorria por todo seu corpo.
            - Não fale mais, querido. Descanse.
            - Não. Eu preciso falar. Meu filho precisa saber de tudo, através de mim, agora, caso contrário pode ser muito tarde, e ele pode sofrer muito mais, como eu sofri.
            Todos ficaram em silêncio, enquanto o pai tomava fôlego e se recuperava da dor provocada pelas lembranças.
            - Eu estava ontem a noite, assistindo televisão. Era como se já soubesse, já sentisse o que iria acontecer. As primeiras notícias foram as de sempre, de algum escândalo de corrupção e da abertura de mais uma CPI, ou seja, nada de mais. Sempre vai haver notícias de corrupção que nunca vão dar em nada e sempre serão abertas mais CPIs que irão resultar em mais nada ainda. Durante o intervalo, senti uma dor no peito, um prelúdio para o que estava para acontecer. Começaram as notícias esportivas. Eram as mesmas de sempre, nada de mais, até que começaram a falar do Campeonato Brasileiro. Quando falaram a classificação foi que eu senti aquela dor, que de tão forte, me fez  gritar, e desmaiei.
            - Mas o que a classificação do Campeonato Brasileiro tem a ver com a sua dor e o seu desmaio, pai? – perguntou o filho.
            O pai balançou a cabeça, avaliando se o filho teria forças suficientes para aguentar aquela dor, aquele decepção, ao saber da verdade, ao constatar o fim iminente de tudo de bom que ele um dia conhecera no mundo.
            Respirou fundo algumas vezes, segurou com firmeza a mão do filho e o olhou não nos olhos, mas no fundo da alma.
            - Filho, Corinthians e Flamengo estão na liderança do Campeonato Brasileiro. Corinthians é líder, Flamengo, vice. Isso é o fim iminente de tudo, do mundo, de tudo que existiu e que existe de bom numa vida, no esporte.
            O filho soltou a mão do pai e cobriu os ouvidos.
            - Não pode ser... Não pode ser... – dizia ele, desesperado.
            - Essa é a dura verdade, filho. Por isso digo que esse é o fim iminente de tudo que já existiu de bom. Talvez até depois disso, se tudo acabar do jeito que está, nada mais de bom irá haver no mundo, e até as rosas deixarão de florescer na primavera. Os pássaros não vão mais cantar, saldando um novo dia todas as manhã. É o fim de tudo, filho... é o fim...
            O filho então sentiu uma súbita dor no peito e uma fraqueza nas pernas. Tentou resistir, mas não conseguiu, e caiu no chão, inconsciente. Pai e mãe foram socorrê-lo, a mãe desesperada, gritando, e o pai sabendo exatamente o que o filho sentia naquele momento, se perguntando se tinha agido corretamente ao falar aquilo ao filho, sem ao menos prepará-lo para tão forte notícia. Mas ele não podia enganar o filho. Aquilo realmente era o fim, e não havia para onde ir, nem onde se esconder. O fim era iminente, e não havia qualquer chance de esperança.

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