A pequena Karolinne andava segurando firmemente na mão
protetora de sua mãe. Tinha medo de se perder no meio daquela multidão, com
pessoas andando apressadas de um lado para o outro. Sua mãe caminhava
apressada, pois ainda tinha muito até o final daquele dia, e vez por outra,
quando a pequena menina diminuía o passo para observar algo que lhe chamava a
atenção, a mulher a puxava bruscamente.
Era meio
dia, horário em que as pessoas estão mais apressadas, seja para correrem para
casa a fim de fazerem uma breve refeição e retomarem em seguida para a segunda
parte de sua jornada de trabalho, seja para fugirem do sol inclemente, buscando
desesperadamente por uma sombra. O barulho das ruas era ensurdecedor, com
carros buzinando, com o barulho dos motores, com as lojas anunciando as ofertas
em alto-falantes, com as pessoas falando alto para poderem se fazer ouvir, e a
menina, cansada, era quase arrastada por sua mãe, que queria fugir o quanto
antes daquele caos urbano de centro de cidade. Karolinne estava com calor e ao
ver um carrinho de sorvete, pediu para sua mãe comprar um. A mulher, a
princípio relutante, pois não queria se atrasar, negou o pedido da filha, mas
não conseguiu resistir aqueles lindos e brilhantes olhos suplicantes.
- ‘Tá bom,
Karol! Vou comprar seu sorvete, mas fique exatamente aqui – falou a mulher,
deixando a filha sentada num banco enquanto ia comprar o que a filha pedira.
A menina,
comportada, ficou exatamente como e onde a mãe mandara, sentada e protegida sob
sombra de uma frondosa árvore, vendo a mulher se fundir à multidão. Ficou balançando
suas perninhas curtas, olhando as pessoas caminhando apressadas, indo de um
lugar para o outro. Olhava, vez por outra, para o céu, que estava de um azul
claro, belo, naquele horário, sem nenhuma nuvem. As folhas da árvore não se
moviam um centímetro sequer e a menina sentia o suor deixando grudados fios de
cabelo no alto da cabeça. Fechou os olhos e sentiu uma suave e fria brisa lhe
envolver. Quando abriu os olhos, viu, parado, a poucos metros de onde estava,
um gato cinza lhe olhando nos olhos. A menina achou estranho um gato ali,
despercebido entre tantas pessoas. Sorriu para ele e o chamou com sua mãozinha,
mas o gato não deu um único passo em sua direção, mas balançou o rabo e se
virou. Com um andar suave, começou a passar por entre as pernas das pessoas,
que sequer o notavam. A menina, curiosa, olhou para o lado, para onde sua mãe
tinha ido, e a viu ainda na fila para comprar o sorvete, e olhou para onde o
gato sumira, e viu apenas a ponta de sua cauda. Não pensou duas vezes e saltou
no chão e correu em direção ao gato, chamando-o. Passou esbarrando nas pessoas,
que desviavam dela e gritavam às suas costas “cuidado por onde anda, menina!”. Perdeu
de vista duas ou três vezes o gato, mas logo encontrava seu rastro, a ponta de
seu rabo dobrando uma esquina ou outra. Corria o máximo que lhe permitiam suas
pernas curtas. Passou por becos estreitos por onde só andavam umas poucas
pessoas, atravessou ruas antigas pelas quais ela não lembrava de ter passado,
até que se viu sozinha num beco aparentemente sem saída. Com a certeza de que
tinha se perdido, sentiu as lágrimas lhe vindo aos olhos e a garganta ficar
apertada com um soluço, quando viu, pouco a sua frente, o gato, que estava como
que lhe esperando. Ele miou e se virou, atravessando as grades de uma enorme
casa. A menina correu até onde estava, implorando para que o bichano a
esperasse, mas ele não lhe deu ouvidos.
Karolinne
parou em frente a um casarão abandonado, com erva daninha cobrindo toda a
entrada e com as grades enferrujadas. Sentiu certo medo, pois casarões daquele
tipo lhe lembravam os fantasmas e bruxas que habitavam casas daquele tipo nas
histórias que li e nos filmes que assistia, mas ao ver o gato entrando por
aquela porta, seu medo se dissipou e ela empurrou o portão enferrujado, que
abriu facilmente, dando-lhe passagem. Ela correu até a porta, que estava
parcialmente aberta, e a empurrou para poder entrar, e tal não foi a surpresa
ao ver, ao invés de um interior deteriorado, de uma casa velha como sua fachada
deduzia, uma imensidão de estantes e livros, tudo organizado, bonito,
convidativo a um passeio nas páginas e melífluas palavras de um autor.
Andou pelos
corredores atulhados de livros, com estantes do chão ao teto dos mais variados
títulos e se perdeu e se achou um sem número de vezes, deixando-se guiar apenas
pelo instinto. Passava a mão nas lombadas dos livros e vez por outra tirava um
ou outro para folhear. Um livro lhe chamou a atenção, e ela sentiu uma força
irresistível vindo dele, como se ele estivesse clamando para ser lido. Karolinne
o retirou da estante. Era um livro comum entre tantos outros livros iguais na
sua aparência, tinha uma capa dura e não era tão volumoso, era repleto de belas
ilustrações e a história era a de um Rei Gato. Só então, ao ver o título do
livro, foi que ela se lembrou que tinha esquecido completamente do gato que
seguira, que a conduzira até ali. Fechou o livro de supetão e levantou a cabeça
e se espantou a ver não só um gato, mas vários ao seu redor, e entre eles,
aquele gato cinza que a trouxera até ali. Sentiu o coração acelerar ao se ver
cercada por tantos gatos, mas aquele que havia seguido deu um passo á frente
dos demais, abriu a boca, mas ao invés de soltar um miado, falou suavemente.
- Não tenha
medo, Linda Menina. Nós não lhe faremos nenhum mal. Eu só lhe trouxe até aqui
para que você encontrasse entre esses tantos livros que aqui estão, aquele que
nos é o mais precioso, o que tem a mais bela história, e queria que você o
lesse para nós.
A menina
ficou estática, pois nunca tinha visto um gato falando. Olhou para os outros e
os viu sentando-se e assentindo, esperando para que ela abrisse novamente o
livro e iniciasse a leitura. Eram tantos gatos, de todos os tamanhos, cores e
idades, todos expectantes, observando-a detidamente. Um a um, os gatos
começaram a abrir a boca e falar, pedir, suplicar para que ela lesse aquele
precioso livro para eles, e ela sorriu ao ver tantos gatos falando.
- Tudo bem.
Eu irei ler pra vocês! – disse ela.
Os gatos
soltaram gritos e miados entusiasmados ao ouvirem aquilo. Ela então se sentou e
abriu o livro no colo, e os gatos logo a cercaram. Alguns se empoleiravam em
seus ombros para melhor verem as letras graúdas e as imagens, uns esticavam os
pescoços para melhor verem e seguirem a história, enquanto outros simplesmente
ficavam perto, deitando-se e fechando os olhos para melhor imaginarem e viverem
aquela fantástica história.
Karolinne
ficou longas horas lendo a história do lendário Rei dos Gatos, que havia sumido
há séculos, mas que deixara um importante legado e uma infinidade de súditos
que deveriam aguardar pelo seu retorno, que aconteceria quando aquele livro
fosse lido por mil e uma meninas especiais, que acreditassem naquelas palavras
e lessem aquele livro para mil e um gatos nos dias seguintes à descoberta do
livro, na janela de sua casa, e espalhassem aquela história para todos os gatos
do mundo, e quando isso acontecesse, que todos os gatos soubessem da história
do Rei dos Gatos, ele retornaria e seu reino seria restabelecido, e todas as
pessoas do mundo não mais ouviriam os miados dos gatos, mas sim suas
verdadeiras vozes.
A menina
terminou a história e respirou fundo duas ou três vezes e ficou completamente
em silêncio antes de se dar conta de que estava novamente sozinha entre aquelas
estantes. Dos gatos, todos que antes estavam ali, somente um, aquele que a
trouxera, permanecia. Ela então se deu conta de que um longo tempo já tinha se
passado, de que sua mãe devia estar preocupada com seu sumiço, e saiu correndo
daquela casa, levando consigo o livro debaixo do braço.
Seu instinto
a guiou pelas mesmas ruas e becos que tinha percorrido antes, até encontrar o
mesmo banco sob a mesma árvore. Correu até lá e ao se sentar, viu sua mãe vindo
em sua direção com um sorvete.
- Trouxe de
baunilha, seu sabor favorito – disse a mulher, entregando para a filha o
sorvete.
Karolinne
olhou para a mãe, e só então se deu conta de que o tempo não tinha passado. Se perguntou
se aquela aventura, aquela perseguição ao gato, a leitura, a história e o livro
tinham realmente acontecido.
- O que é
isso? Onde você achou esse livro? – perguntou sua mãe, apontando para o livro
que estava embaixo do braço da menina.
- Esse livro?
Ah, eu achei! – falou ela, dando a resposta mais óbvia que toda criança daria
numa situação daquelas. A mulher apenas sorriu, passou a mão na cabeça da filha
e esperou que ela terminasse de tomar seu sorvete.
Foram para
casa, mas sem pressa de chegar, com Karolinne protegendo seu precioso tesouro.
Naquela noite e nas noites seguintes, assim que todos iam
dormir, ela abria a janela de seu quarto e no silêncio da noite, esperava que
um gato qualquer passasse por ali, e quando isso acontecia, ela abria o livro e
lia a história do Rei dos Gatos. Quando terminava, o gato soltava um miado de
aprovação, pulava o muro e ia embora, e ela fechava o livro e ia dormir. Fez isso
por muito tempo, por exatas mil e umas noites seguidas, lendo a história e
difundindo-a para mil e um gatos. Quando terminou a milésima primeira leitura,
fechou o livro e o guardou na sua prateleira de livros.
O tempo
passou, e Karolinne já não era mais uma pequena menina como outrora, e muitas
coisas que vivera na infância já eram apenas, agora, vagas lembranças. Havia se
tornado uma bela mulher e tinha uma linda filha. Karolinne estava apressada,
como sempre andava nos últimos tempos, e caminhava esbarrando nas pessoas pelo
centro da cidade, carregando pela mão a filha, que reclamava do calor e do
cansaço.
- Mãe, eu
quero um sorvete – pediu a menina.
Karolinne, contrariada, queria ir
para casa, onde tinha muita coisa a fazer, mas a filha realmente estava cansada
e adorava sorvete. Levou-a até um banco de praça e pediu para que ela ali
ficasse, e foi comprar o sorvete da filha.
Enquanto estava na fila para comprar
o sorvete, viu a menina se levantar e sair correndo. Pensou, por um instante,
em gritar, chamando-a, pois ela poderia se perder, quando viu o que havia
chamado a atenção da menina: um gato, o mesmo gato que ela seguira outrora. Ela
sorriu por dentro, tomada um turbilhão de lembranças. Comprou um sorvete para
si mesma e ficou esperando que filha retornasse, para só então comprar o dela e
ver, reconhecer, o livro que ela traria para casa e leria para os gatos,
através da janela aberta, pelas mil e uma noites seguintes.
Lima, Lima, Lima... Essa foi a história mais linda que já li sua. Honestamente, que coisa linda! Não digo isso porque essa história foi especialmente feita pra mim e contém duas das coisas que eu mais amo nessa vida - gatos e livros -, mas sim porque... porque... eu nem sei porque! Eu estou tão feliz por ter lido isso. Tão absolutamente emocionada. Obrigada. Verdadeiramente obrigada.
ResponderExcluirDe fato uma linda e sensível história!!! Me deixou ansiosa pelo livro!!! =)
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