Um homem, parado, não consegue acreditar no que tem diante
de si, no que seus olhos veem: a casa que fora seu lar completamente em ruínas.
Longos foram os anos que passara longe, mas em nenhum momento deixou de ter
clara a imagem de sua casa, para onde sabia que podia retornar. Em seus
devaneios se via novamente a criança que fora um dia, correndo pelos
corredores, fugindo e brincando com o seu cão, subindo naquela árvore onde seu
pai, certa vez, havia subido e amarrado uma corda num grosso galho e na outra
ponta da corda prendido a um velho pneu, construindo, assim, um balanço, onde
ele, menino, passara longas e infindáveis horas de seu dia. Lembrava-se dos
banhos de chuva que tomara nas noites de inverno. Lembrava-se até dos medos dos
tempos de menino, das noites escuras em que dormia sozinho no seu quarto, mas
que sempre acordava de madrugada e ia pedir abrigo na cama dos pais, alegando
que não conseguia dormir em sua própria cama. Lembrou da adolescência, da
primeira namorada, do seu nome e do dela dentro de um coração, que gravara com
a ajuda de uma faca no tronco da árvore, e que depois apagara com a mesma faca
quando percebeu que tudo não passara de uma ilusão de amor juvenil. Sofrera longas
horas e passara longas noites em claro, querendo chorar sem conseguir após
aquela decepção, a primeira decepção amorosa. Depois se reerguera, como todos
se reerguem da primeira queda, e seu coração cicatrizara, da mesma forma que
aquela árvore. Mas por mais que afirmasse, nunca mais fora o mesmo após aquela
decepção, nunca mais conseguira amar de forma tão irrestrita e nunca mais se
dera da mesma maneira, tão por inteiro.
Lembrava, agora parado, ali, onde
era bombardeado por tantas lembranças, do dia em que fora embora, de seu pai
parado à porta, lhe dando adeus, de sua mãe chorando, pedindo para ele não ir,
pois não resistiria viver seu ele, seu filho único, tão amado. Havia se
alistado no exército, desejava ir para a guerra, pois acreditava nas belas ideias
de glória que a guerra traria. Mas o que vira fora bem diferente do tudo que
havia imaginado. Ideias de glória, honra e luta foram sufocadas por gritos de
dor, lamentos, de balas passando perto de sua cabeça e, principalmente, das
imagens de mortes, tanto dos seus companheiros, que vira tombar à sua frente atingidos
por uma bala, sem que nada pudesse fazer, quanto de seus inimigos, que matara
sem piedade, olhando em seus olhos. Revia, revivia a guerra em seus pensamentos
e um arrepio lhe percorria todo o corpo, como uma descarga elétrica. O medo e o
horror de tudo aquilo havia lhe feito fraquejar, havia lhe feito chorar muitas
e longas noites. Todos os dias, quando se retirava do campo de batalha e ia ao
acampamento, antes de dormir, pensava em desistir e voltar para casa, para seu
lar, onde sabia que seria feliz, onde se sentiria seguro, na cama de seus pais,
dormindo entre os dois. Mas todos os dias deixava para o seguinte, e continuava
lutando, apesar do medo e do horror que a guerra lhe infligia diariamente.
Foi-se deixando levar, deixando
que a guerra entrasse dentro dele, até que não mais sentia medo, até que não
mais sentia mais nada com os amigos que morriam e com os inimigos que matava:
eram, para ele, todos iguais, vitimas de uma guerra. Lutou bravamente sem nunca
ser ferido externamente, mas por dentro a guerra havia deixado muitas e
profundas cicatrizes em sua alma, que ele escondia de si mesmo. Foi destacado
para outras guerras, recebeu inúmeras honrarias e alcançou altos graus na
hierarquia de comando, as quais recebia sem qualquer emoção no rosto, como se
tudo aquilo fosse parte de um processo natural.
Talvez a única coisa, em todos
aqueles longos anos de ausência, após aquelas tantas e infindáveis batalhas e guerras,
foi a sua lembrança, as imagens da sua casa, na qual ele lembrava todas as
noites, antes de dormir. E agora tinha diante de si não a lembrança, mas a
realidade que se descortinava diante de seus olhos, de sua casa em ruínas.
Deu dois passos, lentos, pesados,
e abriu o portão, que caiu no chão quando ele o tocou. Viu não a árvore de sua
infância onde seu pai armara uma balanço, não a árvore onde gravara seu nome e
o de sua primeira amada, mas uma outra árvore, que jazia no chão, seca,
completamente sem vida. As ervas daninhas haviam tomado conta de tudo. Não havia
mais gramado nem o pequeno jardim que sua mãe cuidava com tanto zelo, não havia
mais a calçada que ia do portão de entrada até o primeiro batente da entrada de
sua casa. As paredes da casa, as que ainda teimavam em permanecer de pé, estavam
enegrecidas pelo tempo e não havia mais qualquer vestígio de cor nelas. As janelas
haviam sido arrancadas pelo tempo, assim como as portas, cujas sobras que não
haviam sido devoradas por cupins serviam de abrigo para inúmeros insetos. O ar
dentro do que restava da casa estava morto, pesado, irrespirável. A poeira
cobria tudo e as teias de aranhas estavam em todos os cantos. Não havia mais
telhado, que havia desabado há anos, o que restava era apenas uns pedaços de
madeira, no teto, seguros precariamente entre duas paredes que ameaçavam
desabar a qualquer momento.
O homem via tudo isso com imensa
tristeza. O seu lar, a sua casa, estava completamente em ruínas, assim como
ele, que lutara tão bravamente em inúmeras guerras que não eram dele para poder
voltar para a sua paz.
Caminhou pelos lugares que tinham
sido corredores bem iluminados com os olhos fechados, sendo levado apenas por
suas lembranças, pois se abrisse os olhos iria se deparar com o pesadelo que
tinha diante de si. Foi até o quarto de seus pais, onde o resto de uma porta
ainda continuava seguro à uma precária parede. Tocou na porta com a ponta de
seus dedos e sentiu, por uma breve fração de segundo, tudo voltar a ser como
antes; mas essa sensação durou muito pouco. Dentro do quarto dos pais não
conseguiu distinguir nada além de um guarda-roupa caído e de uma cama virada. Deixou
que seus passos o levassem até o que um dia tinha sido o seu quarto. Lá a porta
continuava, milagrosamente, intacta, e ele chegou a pensar que ali tudo
permanecera como sempre fora (triste e amarga ilusão!). Ao tocar na porta, ela
desabou, levantando uma espessa nuvem de poeira que o impediu de abrir os olhos
e ver o que tinha diante de si por longos minutos. Quando pôde, por fim, ver,
desejou estar novamente no meio de um campo de batalha, ouvindo tiros vindos de
todos os cantos; desejou ver homens tombando à sua frente e às suas costas;
desejou ver sangue jorrando de feridas abertas; desejou ouvir gemidos de dor,
pedidos de socorro; desejou ver e ouvir tudo o que a guerra tinha para oferecer,
menos ver o ouvir o que tinha diante de si: o nada, a total destruição de todas
as lembranças que permaneceram, até aquele momento, vívidas em sua memória. A visão
que tinha diante de si causou mais estragos em sua alma do que todas as guerras
em que havia lutado.
Seus pés pesavam e estava difícil
respirar naquela atmosfera de tanta destruição de um passado que ele julgava
intacto, mas ele deu um passo em direção ao que tinha sido sua cama. Sentou-se
na beirada, mesmo ouvindo os gemidos da madeira podre que ameaçava se quebrar
com o seu peso e buscou na sua mochila uma das poucas coisas que havia trazido
como mórbida lembrança da guerra: a sua arma.
Pouco depois se ouviu o eco de um
estampido alto, de um tiro, ao qual ninguém prestou atenção.
Ali, no coração daquelas ruínas,
se matou o homem que sobrevivera à inúmeras guerras, mas que não sobrevivera ao
ver a sua infância e vida sepultadas, que jazia em si mesmo, como uma ruína
dentro de uma ruína.
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