domingo, 8 de abril de 2012

A vacina para todo o mal

Ele era um médico-cientista de renome. Sentia-se angustiado por ver tantas pessoas sofrendo, sem nada poder fazer para livrá-las daquele sentimento que, segundo ele, era o causador de todos os males. Resolveu, então, dedicar-se de corpo e alma para a busca de algo que livrasse as pessoas de tal sentimento ou que pelo menos pudesse mantê-lo sob controle. Passava dias e noites entre consultas aos seus pacientes e seu laboratório. Ficava horas a fio em frente ao seu computador, digitando e analisando dados que havia colhido ou numa mesa, com vários livros abertos e espalhados. Mas tanta pesquisa, no entanto, parecia não estar chegando a lugar algum. Fechou todos os livros e, frustrado, resolveu dormir, após passar tantas noites seguidas em claro. Naquela noite, ele teve um sonho e, quando acordou sobressaltado, tinha uma ideia fixa na cabeça: criar uma vacina capaz de expurgar todo aquele mal que afligia a homens e mulheres. Agora ele sabia o que procurava, o que devia procurar, e passou a se dedicar exclusivamente às suas pesquisas. Parou de atender a seus pacientes, deixou de falar com amigos e familiares e praticamente foi esquecido pelo mundo, mesmo por que ele também esquecera de todos e de tudo que havia além daquela janela de seu laboratório, que vivia eternamente fechada.
            Uma noite, passado muito tempo desde que ele se trancara naquele laboratório, quando até as pessoas mais próximas já não se lembravam mais dele, eis que aquela porta, fechada a tanto tempo, se abre, e por ela aparece o médico-cientista. Estava magro, pálido e fraco, tanto que se apoiava nas paredes para não cair, mas tinha um sorriso exultante nos lábios. Segurava em uma das mãos o seu precioso tesouro, o fruto de toda aquela dedicação e trabalho, um pequenino vidro com um líquido cinza escuro, quase negro: a primeira dose da vacina.
            Começou a fazer testes e mais testes, para averiguar a eficácia de sua vacina, e se sentiu satisfeito com os resultados: a vacina realmente funcionava. Proclamou para todo o mundo a sua descoberta: a vacina para todo o mal. Passou, então, por conta própria, a fabricá-la em larga escala para dar início a um processo de vacinação em massa. A expectativa das pessoas era tamanha, pois todas acreditavam nas palavras daquele médico-cientista, e cada uma queria ser a primeira a ser vacina, querendo se livrar “daquele sentimento causador de tantas dores e decepções em nossas vidas”. Todos queriam ser os primeiros a serem agraciados com a primeira dose da vacina, e o médico-cientista, então, teve que estabelecer critérios e criar uma lista a fim de saber quais aqueles que mais necessitavam ser vacinados imediatamente. Pessoas do mundo inteiro vinham procurá-lo, grandes indústrias farmacêuticas e laboratórios queriam adquirir o direito de fabricar aquela vacina, mas ele estava irredutível: somente ele poderia fabricar aquela vacina e ele, e mais ninguém no mundo, seria o responsável por aplicar, em todas as pessoas, a dose da preciosa vacina.
            No dia que estava marcado o início da vacinação, milhares de pessoas, pré-selecionadas, estavam em frente ao seu consultório. Ele não havia, ainda, anunciado quem seria o primeiro a ter a honra e privilégio de receber a primeira dose da vacina. Quando abriu a porta, foi recebido por uma salva de palmas e palavras de congratulações dos ali presentes. Pediu silêncio e agradeceu a todos por estarem ali. Falou de suas pesquisas e do quão difícil tinha sido chegar até ali, do quão trabalho tivera até chegar à “fórmula perfeita”. Tinha na mão uma prancheta com os nomes, em ordem, dos primeiros a serem vacinados. Toda a multidão ficou no mais completo silêncio.
            Ele anunciou o nome de um homem, que se adiantou e recebeu votos de felicitação, com todos invejando a sua sorte de ser o primeiro a ser “expurgado daquele sentimento que causava tanto mal”.
            O homem entrou entre expectante e cambaleante ao consultório. Estava chorando, justamente por que sofrera uma das tantas decepções provocada por aquele sentimento, mas tinha um brilho diferente no olhar, como se, mesmo com toda aquela dor que carregava no peito, estivesse feliz. O médico-cientista ainda o ouviu por longos minutos, para ter a absoluta certeza de que era aquele o homem ideal para ser o primeiro vacinado. Ao ouvir aquelas palavras, aquelas súplicas para que o livrasse daquela dor, embora seus olhos dissessem o contrário, o médico teve a certeza de que tinha feito a escolha certa. O fez sentar numa cadeira e realizou todos os preparativos. Enquanto colocava o líquido na seringa, escutava todas aquelas imprecações e lamúrias do homem, que realmente estava sofrendo, implorando para que o livrasse de tudo aquilo, daquele sentimento. O médico se aproximou dele lentamente, como que medindo os próprios passos e, enquanto injetava o líquido em suas veias, o olhava nos olhos. Percebeu que aquele brilho diferente que tinha nos olhos, aquele olhar, que embora triste naquele momento, era radiante, ia se apagando pouco a pouco, até não restar nada além de uma opacidade naquele olhos. O homem, então, parou de chorar e de se lamentar. Agora sentia-se livre, sem qualquer dor no peito, sem qualquer variação nos seus batimentos cardíacos. Levantou-se e agradeceu ao médico, que exultante o acompanhou até a porta e anunciou ao público, que ali estava esperando: “Ele está curado!”.
            Uma a uma, todas as pessoas que buscavam, em suas cegueiras, uma cura para aquele male, iam entrando no consultório, sendo vacinadas e saindo com o semblante sério, sem qualquer resquício daquele sofrimento que as levara até ali nem qualquer tipo de lembrança da felicidade que tiveram, e da qual sentiram a falta, quando o sentimento “acabou”.
            O médico-cientista estava exultante e exausto após tantas horas seguidas de trabalho ininterrupto. As semanas e meses que se seguiram foram igualmente longas e cansativas.
            Já havia vacinado quase a totalidade das pessoas do mundo e já contava as horas para quando tivesse, por fim, seu momento de tranquilidade, livre daquele trabalho, preparando-se para ser agraciado por todos por ter “salvado as pessoas e o mundo”. Mal olhava para as pessoas antes de aplicar a vacina. Chamava seus nomes, esperava que se sentassem e aplicava a dose única da vacina.
            Chamou o nome de uma mulher, a última de sua lista para aquele dia, e sem olhá-la, indicou a cadeira onde deveria sentar. Preparou a dose da vacina que iria aplicar e, ainda sem olhá-la nos olhos, enfiou a agulha em seu braço e começou a liberar o líquido da seringa em suas veias. Foi só quando já tinha praticamente terminado quando a olhou. Seu coração bateu acelerado a ponto de quase sair por sua boca ao fitar aqueles olhos tão belos, mas que pouco a pouco perdiam o brilho. Passou a sentir o mesmo sentimento que levara todas aquelas pessoas ao seu consultório, mas não a sua face má, mas a parte boa, magnífica, que o fazia sentir flutuar, que fazia seu coração bater mais forte e acelerado, que lhe abria um sorriso no rosto e lhe dava leveza à alma. Soube, só então se dava conta, do erro que cometera. Aquele mesmo sentimento, que, segundo ele, era o causador de todo o mal no mundo, responsável por tantas dores e decepções, era o mesmo que movia toda a humanidade, era o mesmo sentimento responsável por toda a felicidade do homem, era o sentimento que fazia viver, desejar, amar...
            Só então, ao ser arrebatado por tal sentimento, por se apaixonar e amar de tal maneira, pela primeira vez em sua vida, ele se deu conta de seu erro. Mas não havia mais como voltar atrás, pois a mulher havia sido vacinada e não poderia, jamais, corresponder a seu amor, e ele sabia disso mais do que ninguém.
            Quando ela saiu, que fechou a porta, ele se trancou novamente em seu laboratório e chorou. Queimou todas as suas anotações e destruiu todo o estoque que ainda restava daquela vacina, que parecia trazer tanta paz e tranquilidade, mas que destituía os homens daquele sentimento que os tornava humanos. Chorou por longos dias e noites, sozinho, e quando acabou seu lamento, resolveu remediar todo o mal que havia causado à humanidade: resolveu criar um antidoto para aquela vacina, algo capaz de dar novamente aos homens a capacidade de amar, de ser e de viver novamente aquele sentimento responsável por toda a sua felicidade: o amor.

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