Ele era um médico-cientista de renome. Sentia-se angustiado
por ver tantas pessoas sofrendo, sem nada poder fazer para livrá-las daquele
sentimento que, segundo ele, era o causador de todos os males. Resolveu, então,
dedicar-se de corpo e alma para a busca de algo que livrasse as pessoas de tal
sentimento ou que pelo menos pudesse mantê-lo sob controle. Passava dias e
noites entre consultas aos seus pacientes e seu laboratório. Ficava horas a fio
em frente ao seu computador, digitando e analisando dados que havia colhido ou
numa mesa, com vários livros abertos e espalhados. Mas tanta pesquisa, no
entanto, parecia não estar chegando a lugar algum. Fechou todos os livros e,
frustrado, resolveu dormir, após passar tantas noites seguidas em claro. Naquela
noite, ele teve um sonho e, quando acordou sobressaltado, tinha uma ideia fixa
na cabeça: criar uma vacina capaz de expurgar todo aquele mal que afligia a
homens e mulheres. Agora ele sabia o que procurava, o que devia procurar, e
passou a se dedicar exclusivamente às suas pesquisas. Parou de atender a seus
pacientes, deixou de falar com amigos e familiares e praticamente foi esquecido
pelo mundo, mesmo por que ele também esquecera de todos e de tudo que havia
além daquela janela de seu laboratório, que vivia eternamente fechada.
Uma noite,
passado muito tempo desde que ele se trancara naquele laboratório, quando até
as pessoas mais próximas já não se lembravam mais dele, eis que aquela porta,
fechada a tanto tempo, se abre, e por ela aparece o médico-cientista. Estava magro,
pálido e fraco, tanto que se apoiava nas paredes para não cair, mas tinha um
sorriso exultante nos lábios. Segurava em uma das mãos o seu precioso tesouro,
o fruto de toda aquela dedicação e trabalho, um pequenino vidro com um líquido
cinza escuro, quase negro: a primeira dose da vacina.
Começou a
fazer testes e mais testes, para averiguar a eficácia de sua vacina, e se
sentiu satisfeito com os resultados: a vacina realmente funcionava. Proclamou para
todo o mundo a sua descoberta: a vacina para todo o mal. Passou, então, por
conta própria, a fabricá-la em larga escala para dar início a um processo de
vacinação em massa. A expectativa das pessoas era tamanha, pois todas
acreditavam nas palavras daquele médico-cientista, e cada uma queria ser a
primeira a ser vacina, querendo se livrar “daquele sentimento causador de
tantas dores e decepções em nossas vidas”. Todos queriam ser os primeiros a
serem agraciados com a primeira dose da vacina, e o médico-cientista, então,
teve que estabelecer critérios e criar uma lista a fim de saber quais aqueles
que mais necessitavam ser vacinados imediatamente. Pessoas do mundo inteiro
vinham procurá-lo, grandes indústrias farmacêuticas e laboratórios queriam
adquirir o direito de fabricar aquela vacina, mas ele estava irredutível:
somente ele poderia fabricar aquela vacina e ele, e mais ninguém no mundo,
seria o responsável por aplicar, em todas as pessoas, a dose da preciosa
vacina.
No dia que
estava marcado o início da vacinação, milhares de pessoas, pré-selecionadas,
estavam em frente ao seu consultório. Ele não havia, ainda, anunciado quem
seria o primeiro a ter a honra e privilégio de receber a primeira dose da
vacina. Quando abriu a porta, foi recebido por uma salva de palmas e palavras
de congratulações dos ali presentes. Pediu silêncio e agradeceu a todos por
estarem ali. Falou de suas pesquisas e do quão difícil tinha sido chegar até
ali, do quão trabalho tivera até chegar à “fórmula perfeita”. Tinha na mão uma
prancheta com os nomes, em ordem, dos primeiros a serem vacinados. Toda a
multidão ficou no mais completo silêncio.
Ele anunciou
o nome de um homem, que se adiantou e recebeu votos de felicitação, com todos
invejando a sua sorte de ser o primeiro a ser “expurgado daquele sentimento que
causava tanto mal”.
O homem
entrou entre expectante e cambaleante ao consultório. Estava chorando,
justamente por que sofrera uma das tantas decepções provocada por aquele sentimento,
mas tinha um brilho diferente no olhar, como se, mesmo com toda aquela dor que
carregava no peito, estivesse feliz. O médico-cientista ainda o ouviu por
longos minutos, para ter a absoluta certeza de que era aquele o homem ideal
para ser o primeiro vacinado. Ao ouvir aquelas palavras, aquelas súplicas para
que o livrasse daquela dor, embora seus olhos dissessem o contrário, o médico
teve a certeza de que tinha feito a escolha certa. O fez sentar numa cadeira e
realizou todos os preparativos. Enquanto colocava o líquido na seringa,
escutava todas aquelas imprecações e lamúrias do homem, que realmente estava
sofrendo, implorando para que o livrasse de tudo aquilo, daquele sentimento. O médico
se aproximou dele lentamente, como que medindo os próprios passos e, enquanto
injetava o líquido em suas veias, o olhava nos olhos. Percebeu que aquele
brilho diferente que tinha nos olhos, aquele olhar, que embora triste naquele momento,
era radiante, ia se apagando pouco a pouco, até não restar nada além de uma
opacidade naquele olhos. O homem, então, parou de chorar e de se lamentar. Agora
sentia-se livre, sem qualquer dor no peito, sem qualquer variação nos seus
batimentos cardíacos. Levantou-se e agradeceu ao médico, que exultante o
acompanhou até a porta e anunciou ao público, que ali estava esperando: “Ele
está curado!”.
Uma a uma,
todas as pessoas que buscavam, em suas cegueiras, uma cura para aquele male,
iam entrando no consultório, sendo vacinadas e saindo com o semblante sério,
sem qualquer resquício daquele sofrimento que as levara até ali nem qualquer
tipo de lembrança da felicidade que tiveram, e da qual sentiram a falta, quando
o sentimento “acabou”.
O médico-cientista
estava exultante e exausto após tantas horas seguidas de trabalho ininterrupto.
As semanas e meses que se seguiram foram igualmente longas e cansativas.
Já havia
vacinado quase a totalidade das pessoas do mundo e já contava as horas para
quando tivesse, por fim, seu momento de tranquilidade, livre daquele trabalho,
preparando-se para ser agraciado por todos por ter “salvado as pessoas e o
mundo”. Mal olhava para as pessoas antes de aplicar a vacina. Chamava seus
nomes, esperava que se sentassem e aplicava a dose única da vacina.
Chamou o
nome de uma mulher, a última de sua lista para aquele dia, e sem olhá-la,
indicou a cadeira onde deveria sentar. Preparou a dose da vacina que iria
aplicar e, ainda sem olhá-la nos olhos, enfiou a agulha em seu braço e começou
a liberar o líquido da seringa em suas veias. Foi só quando já tinha
praticamente terminado quando a olhou. Seu coração bateu acelerado a ponto de
quase sair por sua boca ao fitar aqueles olhos tão belos, mas que pouco a pouco
perdiam o brilho. Passou a sentir o mesmo sentimento que levara todas aquelas
pessoas ao seu consultório, mas não a sua face má, mas a parte boa, magnífica,
que o fazia sentir flutuar, que fazia seu coração bater mais forte e acelerado,
que lhe abria um sorriso no rosto e lhe dava leveza à alma. Soube, só então se
dava conta, do erro que cometera. Aquele mesmo sentimento, que, segundo ele,
era o causador de todo o mal no mundo, responsável por tantas dores e
decepções, era o mesmo que movia toda a humanidade, era o mesmo sentimento
responsável por toda a felicidade do homem, era o sentimento que fazia viver,
desejar, amar...
Só então,
ao ser arrebatado por tal sentimento, por se apaixonar e amar de tal maneira,
pela primeira vez em sua vida, ele se deu conta de seu erro. Mas não havia mais
como voltar atrás, pois a mulher havia sido vacinada e não poderia, jamais,
corresponder a seu amor, e ele sabia disso mais do que ninguém.
Quando ela
saiu, que fechou a porta, ele se trancou novamente em seu laboratório e chorou.
Queimou todas as suas anotações e destruiu todo o estoque que ainda restava
daquela vacina, que parecia trazer tanta paz e tranquilidade, mas que destituía
os homens daquele sentimento que os tornava humanos. Chorou por longos dias e
noites, sozinho, e quando acabou seu lamento, resolveu remediar todo o mal que
havia causado à humanidade: resolveu criar um antidoto para aquela vacina, algo
capaz de dar novamente aos homens a capacidade de amar, de ser e de viver
novamente aquele sentimento responsável por toda a sua felicidade: o amor.
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