domingo, 22 de abril de 2012

O último dia de um homem


O homem condenado à morte estava vivendo seu último dia antes da execução. Tinha vivido seus últimos anos trancafiado naquela cela minúscula, vendo outros prisioneiros virem, ficando o tempo e irem embora, sendo muitas vezes arrastados, numa tentativa desesperada de adiar o inadiável. No início, nas primeiras vezes em que viu os homens tornando-se crianças a chorarem, clamando por suas vidas, ficou impressionado, mas com o tempo acostumou-se, da mesma forma que se acostumara às visitas dos religiosos que vinham frequentemente visitar um ou outro condenado antes da execução, e que sempre paravam em cada uma das celas ocupadas com outros prisioneiros e perguntavam se precisavam de um consolo e de uma palavra de Deus. Ele nunca havia prestado atenção nesses homens, até aquele dia. Sempre que ouvia aqueles passos leves no corredor, virava-se na cama e ficava em frente à parede, escutando muitas vezes as lamúrias dos condenados, suas últimas palavras antes da execução.
            Nunca, em todos aqueles anos, recebeu uma única visita, pois não havia ninguém, do lado de fora, que o conhecesse, que se importasse com ele, que sequer soubesse de sua existência. No dia em que fora preso, sentiu mesmo um certo alívio, pois o levariam a uma prisão, onde ficaria isolado, com sua própria solidão, e não do lado de fora, numa rua, onde estava cercado por milhares de pessoas, mas tão só, onde a solidão se tornava ainda mais pesada. Fora julgado e condenado, e em nenhum momento se defendera, mesmo quando o juiz o havia questionado sobre os motivos que o levaram a cometer aquele crime, que embora não tenha feito mal a ninguém, era considerado inadmissível naquela sociedade. O crime havia sido premeditado, cometido propositadamente com o intuito de ser descoberto – não havia, em nenhum momento, cometido para ser um “crime perfeito” – havia deixado inúmeras pistas para que pudessem chegar até ele e prendê-lo.
            Os anos que passara preso esperando pela ordem de sua execução não foram, de forma alguma, penosos para ele, pois ali, trancado naquela cela, mesmo estando sozinho, não se sentia tão só quanto se sentia quando estava do lado de fora.
            Agora, em suas últimas horas de vida, revia tudo que havia vivido até então e sentia um vazio no peito ao constatar que não conseguia se lembrar de nada, de nenhum momento em especial que faça sentido, que tenha feito com que sua vida tivesse valido a pena. Não deixava amigos nem familiares que dele pudessem sentir saudade, e isso o deixava aliviado e triste – aliviado por que não deixaria ninguém triste quando fechasse os olhos, e triste por que ninguém iria deixar flores em seu modesto túmulo. Em todos aqueles anos ninguém o vira chorar, lamentar-se e clamar por sua vida. Ele se sentia mesmo, quem o visse notaria, um estranho brilho nos seus olhos, como que de satisfação e de estranha tranquilidade.
            Havia dormido tranquilamente a sua última noite de sono, mas não tinha sonhado. Mais uma vez, um sono reparador, sim, mas sem sonhos. Ele não se lembrava da última vez em que sonhara, ele não se lembrava sequer se alguma vez em sua vida havia sonhado. Acordou com a expectativa de viver suas últimas horas de forma tranquila e serena, esperando pelo momento derradeiro. Fora especialmente bem-tratado pelos carcereiros, que ofereceram, inclusive, uma última refeição especial. Ele aceitou esse bom-tratamento, sentindo-se especial, cuidado, uma última e única vez na vida. Aceitou que um religioso viesse lhe visitar, mas apenas para ter um alguém que lhe falasse alguma coisa uma vez na vida, mesmo que ele nada falasse. Andou um pouco pela cela, de um lado para o outro, e chegou até a olhar pela minúscula janela, para o pátio da prisão, que estava vazio àquela hora.
            Quando ouviu passos pesados vindos pelo corredor, levantou-se bem lentamente. Viu três guardas fardados, que abriram a cela, lhe algemaram e lhe conduziram por aquele corredor mal iluminado. Ele, em momento algum, tentou fugir ou falou qualquer palavra aos guardas que o escoltavam, e os seguia docilmente, feliz mesmo – talvez aquele estivesse sendo o momento mais feliz de sua vida. Alguns presos, enquanto era conduzido por aqueles infindáveis corredores, lhe dirigiam palavras obscenas enquanto outros lhe jogavam palavras de apoio e coragem naquele último instante e outros, ainda, simplesmente ficavam calados, olhando-o com um misto de compaixão e admiração àquele homem que caminhava de forma tão firme para a sua execução.
            Passou por inúmeras portas até que chegou a uma sala branca com um enorme vidro em uma das paredes, onde pessoas poderiam ver sua execução em uma outra sala, ao lado, que estava vazia. Viu algumas pessoas presentes, além de outras guardas, mas seus olhos se fixaram em um homem: o seu carrasco, aquele que lhe libertaria daquela vida. Deixou-se conduzir e deitou suavemente na cama, onde tiras de couro prenderam suas pernas e braços. Tinha um leve sorriso nos lábios quando todos deixaram a sala, ficando apenas ele e aquele que seria o responsável por injetar em suas veias a droga que lhe faria entrar num sono profundo, do qual jamais poderia acordar.
            Quando tudo ficou em silêncio, ele olhou para o lado, através do vidro, para a outra sala, só para constatar que ela continuava vazia. Olhou dentro dos olhos do seu carrasco, que pela primeira vez tremia. De todas as execuções pelas quais fora responsável, aquela era a primeira vez que acontecia de tremer, de desejar não ser ele o responsável pela morte de um homem. O condenado sorriu e abriu a boca para falar que estava tudo bem, e pediu que ele fizesse aquilo, que lhe livrasse daquela longa, dura e solitária vida.
            Enquanto injetava a primeira dose da droga, o carrasco começou a ver o condenado cair num leve sono, quando lhe perguntou o motivo de ter cometido, há tantos anos, aquele crime, de ter deixado tantas pistas para que pudesse ser descoberto, de estar ali, sendo morto, de forma tão serena, como se tivesse passado toda a vida ansiando por aquele momento.
            - Eu fiz tudo de propósito para ser preso, julgado e condenado, pois não conseguia mais carregar sobre meus ombros o peso da solidão que sentia. Não queria, não conseguia mais viver carregando esse fardo, mas também não conseguia tirá-lo de mim, livrar-me dessa vida solitária, cometendo suicídio... – falava isso enquanto sentia o fardo de sua solidão ser retirado, pouco a pouco, de seus ombros, sentindo-se cada vez mais leve.
            O carrasco, ao ouvir aquilo, ainda tentou parar a execução, mas não havia mais tempo. O homem havia fechado os olhos e estava sorrindo.

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