Ele já vinha planejando aquilo há meses e à medida que o dia
se aproximava, ficava mais e mais ansioso, e sua família o estranhando. Sua
esposa conhecia aquele olhar, aquele jeito de menino traquino quando está
bolando algum plano mirabolante e temia a nova ideia do marido. Mesmo quando,
certa vez, o pressionou, dizendo que não iria preparar a feijoada de domingo
caso ele não dissesse o que estava escondendo, ele nada falou. Apenas uma
dolorida e solitária lágrima brotou de seu olho e rolou por sua face, e um leve
tremor de seu queixo denunciou o seu desapontamento; depois deu de ombros e
disse que não estava a fim de feijoada naquele final de semana mesmo...
Ela
lembrava bem da última vez que ele ficou meses planejando algo sem falar a ninguém
e de repente apareceu em casa tendo comprado um casal de coelhos para as
crianças. Os coelhos logo começaram a se multiplicar e em pouco tempo tinham
tantos coelhos em casa que eles tiveram que tomar atitudes drásticas. Sua filha
mais velha, devido ao trauma pelo excesso de coelhos em casa, dentro de seu
quarto e até em cima de sua cama, até hoje, já uma adolescente, se recusava a
assistir qualquer desenho do Pernalonga ou a qualquer desenho que tenha um
coelho como personagem. Também lhe veio a mente a vez em que ele ficou
arquitetando durante semanas, sozinho, um plano, e de uma hora pra outra
apareceu em casa dirigindo um trailer, dizendo que a partir daquele dia
poderiam morar onde bem entendessem, na casa, na montanha, perto de um rio. As
crianças até gostaram da ideia nos primeiros dias, mas quando perceberam o quão
era apertado dentro do trailer, que a antena da televisão estava constantemente
mal-sintonizada e não podiam assistir seus desenhos animados, logo começaram a
reclamar e aquela mudança de ares que ele tinha planejado durou apenas três
dias. Tiveram uma longa discussão com o ex-dono do trailer, para ele aceitá-lo
de volta. Alegaram que tinha acontecido um mal-entendido e chegaram a alegar
insanidade do comprador. Finalmente, o homem aceitou receber o trailer de
volta, mas não devolveu o valor pelo qual o tinha vendido, alegando
desvalorização, uma compensação financeira pelo negócio mal-feito e que a “casa
sobre rodas” estava usada e mal-conservada.
E agora,
mais uma vez, o homem estava com aquele olhar senil, de quem está planejando
algo grandioso que provavelmente não vai dar certo.
- Jorge, o
que você está planejando dessa vez? – perguntou Marília, certa noite, não
aguentando mais aquela expectativa e os segredos do marido.
- Eu? Eu
não estou planejando nada, amor – respondia dele, e dava seu sorriso maroto.
Os filhos
também haviam percebido que o pai estava planejando algo, que estava escondendo
alguma coisa, e ficaram de olho, tentando descobrir do que se tratava. Lara, a
filha mais velha, sentia o sangue gelar só de pensar em coelhos no seu quarto,
acasalando até enquanto ela dormia, em cima de seu lençol, e Pedro, o filho do
meio, não queria nem pensar em passar três dias morando em um trailer e perder
seus programas de televisão favorito. Somente Julia, a caçula, por ser muito
novinha na época não se lembrava de nada das últimas e mais catastróficas do
pai, estava cheia de boas expectativas.
O feriadão se
aproximava e cada um na casa já fazia seus planos. Lara pretendia ir ao
shopping com as amigas e talvez até pegar um cinema, Pedro queria “zerar” o
novo jogo de videogame que havia ganhado da avó, Julia queria ir passar o dia
na casa da amiga, depois chamar a amiga para passar um dia na sua casa, Marília
pretendia levar a família toda para ir almoçar na casa de sua mãe, e Jorge...
bem... Jorge tinha planos para toda a família.
Na quinta-feira
à noite, quando todos estavam à mesa, jantando, em que o único som que se ouvia
era o da mastigação e dos talheres, Jorge se levantou e pediu que todos
fizessem silêncio, pois tinha algo muito importante para dizer. Tinha planejado
um final de semana maravilhoso para todos: iriam acampar. Lara parou de
mastigar, Pedro deixou cair o garfo, Marília pensou no telefone de um amigo que
era psiquiatra, pois agora tinha certeza de que o marido estava louco e
precisava ser internado, e somente Julinha ficou feliz e bateu palmas.
- Isso
mesmo: vamos acampar! Estão ouvindo? Vamos acampar. Cada um arrumar a sua mochila
colocando só as coisas mais essenciais – pouca roupa Marília e nada de
maquiagem, Lara – que amanhã de manhã, logo cedo, começamos a nossa aventura.
Pedro ainda
esboçou uma reclamação, Lara deu um chilique e Marília quase enfarta, mas nada
do que fizessem ou falassem poderia demover Jorge daquela ideia, afinal de
contas, ele havia planejado tudo tão bem, com tanta antecedência, tendo a
absoluta certeza de que aquele seria o melhor final de semana que todos os
tempos.
Na manhã
seguinte, antes do sol nascer, todos acordaram – na verdade, quase pularam da
cama – quando Jorge, com uma corneta, tocou (ou assoprou, sei lá...) aquela
musiquinha do exército, que aparece em desenho animado, que ele vinha ensaiando
há tanto tempo especialmente para aquela ocasião. Lara ainda cobriu a cabeça
com um travesseiro, Pedro se enrolou ainda mais no lençol e Marília quase tem
um piripaque; somente Julia acordou disposta e assim que o pai terminou a
música, ela já estava de pé, ao seu lado, com a mochila nas costas.
Por mais
que reclamassem, Jorge estava irredutível, e exigiu que todos se levantassem e
colocassem suas bolsas e mochilas na mala do carro. As barracas e o material
para acampamento já estava pronto e devidamente organizado no bagageiro do jipe
que ele tinha alugado especialmente para a ocasião.
- E nada de
café da manhã. Podemos comer alguma coisa no carro e tomar um café da manhã de
verdade quando chegarmos e armarmos o acampamento.
No trajeto,
ninguém reclamou, pois todos estavam com sono demais até para isso. Somente
Julinha acompanhava o pai nas cantorias e estava realmente eufórica com a ideia
de acampar pela primeira vez na vida.
Quando
chegaram ao local, no meio de um lindo bosque, Jorge pulou do carro, se
espreguiçou e fechou os olhos; quando os reabriu, que olhou para trás, percebeu
que todos ainda estavam dentro do carro, dormindo – até Julinha não tinha
resistido e agora dormia como um anjo.
- Ei,
pessoal, chegamos. Está na hora de armarmos as barracas, organizarmos o nosso
acampamento – falava ele, todo eufórico, e vendo que ninguém respondia,
resolveu ir chamá-los mais de perto, batendo palmas.
Quando
todos, finalmente, se cansaram de tentar dormir naquela barulheira, saíram do
carro. Jorge começou a delegar tarefas. Ele e Pedro armariam as barracas,
enquanto Lara e Julia podiam ir procurar água e Marília poderia ficar só
olhando.
Jorge não
conseguiu armar nenhuma das barracas sozinho, e Pedro teve que recorrer ao
manual, que por sorte havia um no porta-luvas do carro, para salvar a honra dos
homens. Lara e Julia demoraram a voltar com a água, pois tinham perdido a
trilha na volta,e chegaram trazendo um pouco d’água, mas tão pouca mesmo que
mal dava para se fazer o café. Tiveram, então, que recorrer à água mineral, que
por sorte Marília tinha se precavido de trazer.
Na hora de
preparar o café, todo mundo se perguntou como ferveriam a água, mas Jorge já
tinha planejado tudo: faria uma fogueira com gravetos e acenderia o fogo usando
o método tradicional, antigo, como se fosse um veterano em acampamentos, como
se tivesse sido até escoteiro quando menino. Tentou durante quase uma hora
acender o fogo usando dois gravetos, sem sucesso, e todos já estavam com a
barriga roncando de fome, quando Pedro, mesmo vendo toda a empolgação do pai,
resolveu cortar o seu barato quando tirou de dentro da mochila uma caixa de
fósforo, para alívio de todos e decepção de Jorge, que justo naquela hora,
segundo ele, surgia a primeira faísca, e para o fogo pegar era só uma questão
de tempo.
- Tudo bem.
Fazer fogo através do método tradicional fica para a próxima vez – disse ele.
Já estava cansado, embora não quisesse demonstrar, e estava com muita fome, e
não via a hora de tomar um xícara de café bem quente e forte, pois ainda estava
com sono.
No início,
todo mundo reclamou muito, principalmente Lara, que estava odiando aquela ideia
de estar perdida “no meio do mato”.
- No meio
do mato não, filha. Na natureza – dizia Jorge.
- No meio
do mato, pai... mato... – reclamava, e foi para dentro de sua barraca, falar
com as amigas ao celular.
Pedro
reclamava por que não tinha televisão nem videogame, e estava começando a
argumentar que seria uma boa ideia voltar para casa para pegar algumas coisas
quando ouviu um urro da irmã mais velha.
- Que
droga! Não tem sinal aqui. Estou isolada do mundo, de tudo e de todos – gritava
ela, maldizendo a maldita ideia do pai.
Ele, que já
imaginava toda essa resistência e reclamações, só ria por dentro com o seu
triunfo.
E à noite,
como iriam fazer para viver sem televisão, sem novela, sem computador, sem MSN?
Jorge já tinha pensado em tudo e feito planos para o que fazerem em todas as
horas do dia naquele feriadão. Como Marília iria preparar a comida? Não tinham
com o que se preocupar: Jorge tinha pensando em tudo e tinha trazido alguns
enlatados, poderiam esquentar alguma comida numa fogueira e eles poderiam pescar
algum peixe num riacho próximo.
Tudo,
apesar dos pesares, parecia estar se encaminhando bem, embora Jorge não ter
conseguido pescar um único peixe, e tiveram que se contentar em almoçar feijão,
arroz e carne de conserva, que tiveram que abrir a lata usando uma faca, pois
tinham esquecido de trazer um abridor de lata, até que Lara teve vontade de ir
ao banheiro.
- Onde é
que tem um banheiro aqui? – perguntou ela.
- Pode ir
ali, atrás daquela moita.
A filha
olhou, incrédula, para a moita, e depois para o pai, em seguida direcionou um
olhar suplicando à mãe.
- É sério
isso? Ter que ir fazer xixi atrás de uma moita?
- Sim. É,
filha. Deixe de frescura uma vez na vida e viva de forma simples. As pessoas
desde tempos imemoriais acampam e ninguém nunca morreu por ter que ir fazer
xixi atrás de uma moita...
- Mas
pai...
Ela estava
com lágrimas nos olhos, mas vendo que realmente não tinha o que fazer, saiu,
cabisbaixa, em direção à moita.
No fim das
contas, aquela experiência de “vida ao natural” não estava sendo tão desastrosa.
Salvo alguma dificuldade e reclamações, todos estavam, de alguma forma, se
divertindo.
Mas quando
a noite chegou, com o pôr do sol... Lara reclamava dos mosquitos, Pedro da
falta do que fazer, Julia dos barulhos e do escuro, que estava com medo, e
Marília de tudo isso junto, e mais ainda do fato de não ter televisão e estar
perdendo um importante capítulo da novela. Jorge, a tudo isso, só dizia para
aproveitarem o final de semana, aquela vida boa ao ar livre, a natureza, tudo
ao redor, e se esquecerem, por alguns instantes, a vida lá longe, naquele
negócio chamado civilização.
Ficaram a noite
em torno da fogueira, um olhando para o outro, sem nada a fazer. Jorge ainda
insistiu em assarem marshmellows, que
ele achava que seria divertido, afinal de contas, em todo filme que havia uma
cena de acampamento, todo mundo fazia isso e parecia fazer parte de uma
tradição de acampamento, mas ninguém parecia muito disposto a isso. Livros ninguém
tinha trazido, e quando Pedro lembrou que tinha trazido seu “livro eletrônico”,
que foi pegá-lo, quando voltou estava com a cara de desapontado, pois estava
descarregado e não havia por perto nenhuma tomada que pudesse usar.
- Então
podemos, ao invés de ler histórias, podemos, nós mesmos, criar as nossas! O que
acham? Quem começa? – perguntou Jorge, empolgado como sempre. Vendo que ninguém
se prontificava, resolveu, ele mesmo começar.
Depois de
contar uma ou duas “historias de trancoso” tão mal-contadas que não surtiram o
efeito desejado além de fazerem todos sentirem um súbito sono, cada um se
recolheu à sua barraca, mesmo ainda sendo cedo. Pedro era o único que teria uma
barraca só pra si, Lara e Julia dividiriam uma e Jorge e Marília, a outra.
Na manhã
seguinte, cada um que reclamava mais do que o outro. Pedro dizia ter dormido em
cima de uma pedra, Julia, que o chão era muito duro, Lara, que havia um grilo
dentro da barraca, e Marília disso tudo junto. Somente Jorge parecia disposto e
empolgado para o “maravilhoso dia que teriam pela frente”.
Ele havia
programado tudo, para viverem um dia inteiro longe de televisão, videogame,
internet ou outros apelativos da “moderna vida civilizada”. Podiam explorar o
bosque (nas palavras de Lara, “o mato ao redor”), pescar no rio entre outras
coisas legais a se fazer quando se está acampando.
Passaram o
dia inteiro sem grandes coisas de que reclamar, e o ponto alto do sábado foi
quando naquela manhã Jorge conseguiu, depois de muita luta e paciência, fisgar
um peixe, com o qual teve que travar uma luta épica, mas que, no fim das
contas, se mostrou tão pequeno que mal dava para uma pessoa comer num almoço, e
tiveram que se contentar em comer salsichas.
Jorge viu
que apesar de toda a resistência no início, da desconfiança e das reclamações,
a família estava se divertindo a valer. Naquele dia ninguém falou em televisão,
videogame, celular ou computador.
À noite,
dessa vez, Jorge conseguiu contar uma história sem que os filhos e a esposa
ficassem bocejando o tempo todo. Assaram marshmellows
e nem se incomodaram tanto assim com o barulho dos grilos e em terem que ir
fazer xixi atrás da moita.
Na manhã
seguinte, apesar das reclamações do frio, das pedras, do chão duro e dos
grilos, todos pareciam bem dispostos a passarem um divertido dia em família.
Almoçaram carne
de conserva, pois, mais uma vez, não conseguiram pescar nenhum peixe, e estavam
descansando à sombra de uma árvore quando Jorge, subitamente, se deu conta de
algo muito importante. Levantou-se de um salto e pediu pressa para que todos
arrumassem suas coisas, pois precisavam voltar para casa. Todos reclamaram,
pois justo agora que estavam começando a curtir o final de semana tinham que
voltar para a civilização. E por quê? O pai estava afobado demais para explicar
o motivo desse retorno súbito.
Desarmaram as
barracas, jogaram as mochilas no porta-malas do jipe e seguiram de volta a
casa, de volta à civilização.
Chegando,
Jorge estacionou o carro na frente da garagem e correu para dentro de casa. Enquanto
todos pegavam as mochilas e guardavam as barracas, ele pegava o controle remoto
e ligava a televisão. Quando Marília entrou em casa, que o viu sentado no sofá,
já tendo pegado uma cerveja, assistindo ao jogo, final de campeonato, deu de
ombros, afinal de contas, seu marido era, definitivamente, um caso perdido, que
não conseguia viver um único domingo sem futebol, longe da televisão, livre da
civilização.
Hahahahaha, tinha que ser. Homens e seu sagrado futebol. Até que me identifico com a Lara, na primeira vez que acampei lembro de ter agido igual a ela.
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