Mais um dia estafante de trabalho
e o vendedor olhava para seu relógio a cada cinco minutos, com a esperança de
ver chegar o momento em que poderia trocar sua farda com uma bonita roupa e ir
aproveitar a noite, numa festa regada a muita bebida e música.
O
vendedor, já ansioso para que chegasse ao fim aquele dia, olhando a todo
instante para a porta, por onde entrariam seus colegas de trabalho, para a
troca de turno e ele pudesse ir embora, quando viu se aproximar uma simpática
senhora.
-
O senhor trabalha aqui? – perguntou ela, mesmo tento observado o logotipo da
empresa em sua camisa e seu crachá. O vendedor, já tão acostumado àquela
pergunta, mesmo tendo vontade de responder de forma ignorante, apenas respondeu
que “sim”, que trabalhava naquela livraria.
A
mulher então começou a remexer sua bolsa, em busca da folha de papel em que
tinha anotado o nome dos livros e autores que provavelmente a sua filha tinha
pedido para comprar. Quando finalmente encontrou a tão procurada lista, que
começou a desdobrá-la, o vendedor, já sabendo de antemão do que se tratava,
tentou impedi-la daquele trabalho todo, dizendo que não trabalhava com aquele
tipo de livro que ela ia pedir. Mas ela não entendeu os gestos do funcionário
nem a expressão de ódio em seu olhar, e continuo calmamente a desdobrar a folha
de papel. Ao terminar esse trabalho, ela o esfregou de tal maneira que a folha
parecia nova.
-
Você tem esse livro aqui, meu filho? – perguntou ela.
O
vendedor, já sabendo que não dispunha daquele livro que a mulher queria, disse
que não antes mesmo de averiguar de que livro, autor e editora se tratava.
-
Não, senhora. Nós não estamos trabalhando com livro didático esse ano –
respondeu ele, com um sorriso no rosto. Estava tão acostumado com tudo aquilo
nas últimas semanas que até seu sorriso não mudava quando era perguntado sobre
livros didáticos. Além do mais, a senhora tinha um rosto tão simpático que era
impossível agir de maneira menos cortês com ela.
A
mulher, com uma expressão de desgosto na face já voltava a dobrar a lista
quando a olhou de relance, e resolveu ver se naquela livraria tinha um outro da
lista.
-
E esse daqui, de português. Você tem?
-
Não tenho nenhum livro didático,
senhora, infelizmente – respondeu ele, agora em tom um pouco mais ríspido.
A
mulher, completamente decepcionada por ter dado uma viagem daquela em vão, para
não encontrar nenhum livro, já se retirava, quando se voltou mais uma vez para
o vendedor e lhe perguntou:
-
Você não tem nem esse daqui, de matemática? – apontando para a lista.
O
vendedor, já inteiramente sem paciência, respirou duas ou três vezes
profundamente antes de responder.
-
Não, senhora. Não tenho nenhum desses livros de sua lista, pois não estou
trabalhando com nenhum – ele
enfatizou bem essa palavra – livro didático esse ano – ele falou de forma
calma, controlada, embora seu queixo tremesse ligeiramente e em seu olhar,
senil, transparecesse o ódio que sentia naquele momento.
A
mulher resolveu então fazer uma última tentativa.
-
E esse aqui, de física, você tem?
O
vendedor, tomado repentinamente por uma fúria inexplicável, saiu, deixando a
senhora sozinha com sua lista, e foi até o escritório da loja. Voltou um
minutinho depois com uma espingarda em punho. Apontou a
arma para a mulher e falou de forma firme e enfática:
-
Eu não tenho livro didático, senhora.
A
mulher, tremendo ante aquela visão apocalíptica, segurou com firmeza a lista
numa mão, para mostrar ao vendedor. Com a outra mão apontou.
-
E esse aqui de química? – a voz dela tremia tanto que mal se conseguia ouvir o
que falava.
-
Eu – bum – não – bum – tenho – bum – LIVRO
DIDÁTICO – respondeu o vendedor, descarregando a arma sobre a pobre senhora.
A
mulher, caída no chão, com o sangue a escapar por todo seu corpo, ainda tinha
forças para levantar a mão, que se negava a soltar a lista de livros, enquanto
com a outra apontava.
-
Nem mesmo o de química? – perguntou ela.
O
vendedor então pegou sua metralhadora automática e tal qual um Rambo, deu mais
de vinte tiros na mulher.
Quando
percebeu que a bondosa senhora não tinha mais vida, ele se agachou e tentou
retirar da mão dela aquela lista, que tinha sido seu decreto de morte. Mas ela
a segurava com tanta força, como se a salvação de sua alma dependesse daqui,
que por mais que o vendedor tentasse, não conseguiu retirar a lista das mãos
dela. Foi então que ele pegou novamente sua espingarda e disparou cinco tiros
no braço da mulher, estilhaçando-o. Somente sua mão ficou inteira e fechada,
negando-se a entregar o papel, a lista de livros didáticos, que seria sua carta
de recomendação para entrar no paraíso.
Foram
necessários mais de cinco homens da polícia, além dos cachorros a latir e a
rosnar, para fazer com que o vendedor largasse a mão da mulher, contra a qual
lutava para arrancar aquele papel.
Ele
foi preso e no dia do julgamento todos estavam quietos e calados quando ele
entrou, sendo escoltado por dez policiais fortemente armados, para protegê-lo
daqueles que queria linchá-lo, por ter matado de forma tão cruel aquela bondosa
mulher, mas também para proteger as pessoas dele, caso ele fosse acometido de
uma nova onda de fúria e ódio repentina.
O
julgamento transcorreu de forma tranqüila e sem incidente algum. As testemunhas
de acusação e de defesa foram ouvidas, foi-se provado que o homicídio não foi
premeditado, sendo o réu, então, sendo acusado de ter cometido um homicídio por
motivos torpes.
Quando
o promotor de acusação teve sua chance de interrogar o réu, começou a andar de
um lado para o outro, como se desfilasse de frente aos jurados e ao juiz. Tirou
de dentro de seu paletó um papel, que desdobrou cuidadosamente e mantendo-se a
certa distância, perguntou ao vendedor:
-
O senhor tinha absoluta certeza de que não tinha esse livro de química?
O
réu então pulou de sua cadeira, conseguiu arrancar uma arma de um dos policiais
que o escoltava e subindo à mesa onde se encontrava o juiz, apontou o revolver
para a própria cabeça e disse de forma clara, para que todos pudessem ouvi-lo
e, enfim, entende-lo.
-
Eu não tenho NENHUM LIVRO DIDÁTICO – então ele descarregou a arma em sua
própria cabeça. Foram seis tiros disparados de forma tão rápida que não houve
tempo para impedi-lo.
Quando
tudo terminou, o réu foi declarado inocente e todos souberam que ele não tinha,
realmente, nenhum livro didático.
Sua
alma foi encaminhada ao céu, apesar dele ter matado uma pessoa e dado um fim a
própria vida. Sua credencial para a entrada no paraíso era uma lista de livros
didáticos.
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