Luíza
fora completamente engolida e tomada por sua rotina. Seu dia-a-dia era dividido
entre trabalho, estudos e outras tantas obrigações, não sobrando, nunca, tempo
para o seu lazer e prazer. Há tempos não traçava uma única linha numa folha de
papel em branco para começar a brincar, dando cor, luz, forma e vida aos seres
criados por sua imaginação. Todos os dias prometia para si mesma que iria
voltar a exercitar a sua arte, que iria dar livre vazão à sua imaginação e
deixar sua mão livre, mas todos os seus dias eram iguais aos anteriores e estes
aos anteriores, e ela nunca conseguia cumprir aquilo que prometera. Até
tentava, para mostrar para si mesmo a sua força de vontade e determinação,
deixando, ao sair de casa, à vista um caderno de desenho aberto e uma enorme
coleção de lápis de cor sobre a escrivaninha, para que quando voltasse, mesmo
sendo tarde da noite, começar a fazer nem que fosse o rabisco de um desenho;
mas ela sempre chegava à casa cansada e ao ver as folhas em branco e os lápis
sem dar cor a nada, dizia que no dia seguinte começaria a desenhar. No dia
seguinte, a mesma coisa. Passavam-se semanas e o caderno de desenho continuava
aberto e os lápis ainda arrumados na sua caixa a ponto de ela nem sequer mais
reparar neles.
Todos os dias eram sempre de um
mesmo igual para Luíza. Os mesmos horários, as mesmas rotinas, os mesmos tempos
perdidos. Pegava até mesmo os mesmos ônibus todos os dias, perdia longas horas
em congestionamentos nos mesmos horários e lugares, sentava-se nos mesmos
lugares, apreciava as mesmas avenidas e o mesmo céu e até via, muitas vezes nos
ônibus, mas principalmente no trabalho e na universidade, as mesmas pessoas.
Seu mundo era sempre o mesmo, pois seu olhar para o mundo também o era.
Um dia, ao sair da universidade um
pouco mais tarde do que o convencional, pois ficara para discutir com colegas
do grupo um trabalho a ser apresentado na semana seguinte, perdeu o ônibus que
sempre pegava. Ficou irritada, pois aquilo a fizera sair da rotina e a faria
perder longos e preciosos minutos na parada esperando o próximo ônibus. O tempo
passava e nada do ônibus vir, a parada ia ficando cada vez mais deserta e Luíza
ficava cada vez mais só ali, até que, quando já olhava para o relógio pela
enésima vez, viu, dobrando a esquina, seu ônibus. Ele veio praticamente vazio,
como ela raramente o via, já que a linha que fazia o trajeto pelo bairro onde
morava normalmente andava lotado. O lugar em que costumava se sentar, na
cadeira alta, perto da porta de saída do ônibus, estava ocupada, e ela se jogou
numa outra soltando um sonoro “que dia!”. Respirou fundo duas ou três vezes e
fechou os olhos. Sentiu o ônibus em movimento, depois parar, abrir as portas
para que passageiros subissem e outros descessem, depois fechar as portas e
voltar a se movimentar.
Numa determinada parada subiu um senhor velho, que
de tão velho era impossível se precisar sua idade por sua aparência, mas que
parecia ter o vigor da sua juventude ainda intactos no seu olhar e na sua voz
rouca e forte. Ele pediu licença aos passageiros e se desculpou por estar
incomodando a sua viagem. Luíza soltou todo o ar que estava nos pulmões,
irritada. “Até a essa hora esses vendedores ambulantes de ônibus aparecem!
Hoje, definitivamente, não é meu dia!”, disse para si mesma e fechou os olhos com
força, mas aquela voz, daquele homem, entrava por seus ouvidos com tal força e
delicadeza, ele tinha um tom tão inebriante que não se conteve e abriu os
olhos. O que viu diante de si era um senhor de cabelos e barba muito branca e
grande, de roupa muito parecida com uma túnica cinzenta, que em outros tempos
deveria ter tido uma cor bonita, mas que perdera devido ao longo uso e às
inúmeras lavagens. Ele se apoiava numa bengala, que na parte de cima, onde
segurava com força, havia muitas fitinhas multicoloridas . Luíza percebeu,
também, que de seu pescoço pendia um delicado colar colorido e em seus finos
braços havia pulseiras feitas de fitas coloridas. Passou tanto tempo
observando-o e sequer notou que ele tinha se calado e a fitava nos olhos. E que
olhos ele tinha, de um verde profundo! O olhar dos dois se encontrou, e Luíza
sentiu um arrepio, pois era como se ele conseguisse ler o que havia em sua alma.
Tentou desviar os olhos, desprender os seus dos dele, mas não conseguiu, e
percebeu, pelo olhar dele, que ele sorria, o que a tranquilizou e fez o seu
coração voltar a bater no compasso correto. Ele então fez um sinal afirmativo
com a cabeça e ela conseguiu desviar os olhos.
O velho homem andou pelo corredor do ônibus, falando
com as pessoas e pedindo que cada uma segurasse um pequeno embrulho dizendo que
não estava vendendo nada, e que dentro daqueles delicados pacotes, uns pequenos
e embrulhados em papeis de cores apagadas, outros grandes e envoltos em papeis
coloridos, havia algo especial para cada uma daquelas pessoas que os quisesse.
Depois voltou para a frente do ônibus, onde dirigiu a palavra a todos e Luíza o
olhou novamente nos olhos, e percebeu que eles não eram mais verdes, mas sim de
um castanho, mas ao piscar, eles voltaram a ser verdes. Ela arregalou os olhos
ao ver a repentina mudança na cor dos olhos do homem e se perguntou se tinha
realmente visto aquilo ou se tinha sido algum fruto da sua imaginação. Ele
sorriu para ela e esperou que cada pessoa se decidisse se iria querer ou não
ficar com os pacotes ele lhes entregara, depois passou pelo corredor do ônibus,
recebendo de volta os das pessoas que não queriam receber nada de um estranho,
e apenas Luíza ficou com o seu, e sem que ela mesma percebesse, estava abraçada
a ele, como se ali houvesse um precioso tesouro. O homem sorriu ao vê-la tão
ferrenhamente agarrada ao seu embrulho, recebeu os dos outros passageiros e
pediu parada. Quando o ônibus parou, Luíza olhou para trás, para ele, e ele
olhou para ela, piscou os olhos, que mudaram de cor rapidamente, passando do
verde para o castanho, piscou novamente e eles adquiriram a cor do azul do céu
em manhã de primavera, e depois aos piscar pela última vez, eles voltaram a ser
verdes. Antes de descer, ele ainda sorriu para uma vez para ela, despedindo-se.
Luíza chegou agitada em casa e nem respondeu a sua
mãe, quando ela lhe perguntou o motivo da demora e se estava com fome, se
queria que preparasse algo para jantar. Abriu de um supetão a porta de seu
quarto e jogou o embrulho que tinha recebido do velho homem sobre a cama.
Começou a andar de um lado para o outro pelo quarto e só voltou a dar por si
quando sua mãe bateu à porta do quarto, chamando-a para jantar. Ela balançou a
cabeça de um lado para o outro, pegou o embrulho e o colocou na gaveta de sua
escrivaninha e disse à sua mãe que já estava indo, que iria apenas tomar um
rápido banho, vestir uma roupa e ir jantar.
Depois do jantar, Luíza, muito cansada, foi se
deitar, como que tendo esquecido do embrulho que estava guardado à um metro de
onde dormia, mas pensando, ainda, no velho cujos olhos mudavam de cor.
Teve
uma noite tranquila e sem sonhos, mas acordou sobressaltada, antes do
despertador, com um barulho vindo da gaveta de sua escrivaninha. Ao abri-la,
viu apenas o embrulho entregue pelo homem no dia anterior.
- Acho que estou precisando
urgentemente de férias – disse para si mesma, e foi se preparar para começar um
novo-igual dia.
Aquele foi um dia atípico na vida de
Luíza. Estava distraída, meio alheia ao que acontecia ao seu redor. Cometeu
erros no trabalho que costumava não cometer e, pela primeira vez em anos
naquela empresa, pediu para sair mais cedo, alegando não estar bem, o que, até
certo ponto, era verdade. Na universidade, não prestou atenção às aulas, quando
convidada, pelo professor, a levantar alguma questão, não fazia as perguntas ou
comentários que se esperava dela. Quando soou o sinal do fim da aula, ela
caminhou devagar em direção à parada, para perder propositalmente o ônibus que
sempre pegava. Pretendia pegar o seguinte, o mesmo do dia anterior, justamente
para provocar um possível encontro com o mesmo homem. Ficou esperando
impacientemente o ônibus, que veio, naquele dia, lotado, mas ela subiu mesmo
assim. A cada parada que o ônibus fazia, ela fechava os olhos torcendo para que
o estranho velhinho subisse, mas não foi o que aconteceu.
Chegando a casa, disse, à sua mãe,
que estava indisposta e que não queria comer nada e iria direto pra cama.
Deitou-se, ainda vestida do jeito que estava, jogou o travesseiro sobre a
cabeça a fim de se acalmar e esperou que sua respiração voltar ao normal, e
quando se sentiu tranquila, foi até sua escrivaninha, abriu a gaveta e tirou lá
de dentro o embrulho. Colocou-o sobre a cama e ficou olhando para ele.
- O que será que tem aí dentro?
Tateou o embrulho para ver se
adivinhava o que havia por trás daqueles papeis, mas não conseguiu adivinhar,
depois começou a cuidadosamente abri-lo e, para sua surpresa, o que encontrou
foi uma coleção de lápis de cor. Eram lápis de cor muito velhos, mas que pareciam
nunca ter sido usados. Luíza abriu seu caderno de desenho e pegou alguns dos
lápis e começou a fazer uns traços sem forma definida a princípio, mas que
pouco a pouco foram tomando a forma de um passarinho. Quanto mais ela
desenhava, mais ficava surpresa com os resultados. Os lápis, apesar de velhos,
davam ao desenho cor e vida impressionante. Quando terminou, pegou o caderno e
o posicionou de forma que pudesse vê-lo melhor, de frente, na altura dos olhos.
- Uau! – disse, impressionada com o
resultado do desenho. Olhou os lápis que agora estavam espalhados sobre a
escrivaninha, trocou de roupa, apagou a luz e foi dormir.
Acordou
na manhã seguinte com o barulho do canto de um pássaro e imaginou estar
sonhando. Era um canto límpido, como os pássaros só cantam para saldar o sol na
primeira manhã de primavera. Ao acordar daquele jeito, ela sorriu. Abriu os
olhos bem devagar, mas os arregalou repentinamente quando viu que o passarinho
que cantava estava voando sobre sua cabeça, no quarto. Pousava no alto de seu
guarda roupa e descia em voo rasante em direção à escrivaninha e ficava lá
alguns segundos, para saltar e ir pousar na cabeceira de sua cama.
- Como você veio parar aqui?
Levantou-se de um salto e passou as
mãos sobre os olhos. O passarinho continuava ali a voar pelo seu quarto e a
cantar. Se seus olhos podiam traí-la, seus ouvidos lhe diziam que havia um
pássaro ali. Abriu então a porta do quarto e foi chamar sua mãe, e tirou da
cama e ao voltar, ao quarto, não havia sinal algum do passarinho.
- Mas... mãe, ele estava aqui. A
senhora não ouviu seu canto?
- Não, filha! Não ouvi canto nenhum
de passarinho nenhum. Não tinha como um pássaro entrar no seu quarto, pois a
janela está fechada. Agora, volte a dormir. Ainda está muito cedo e seu
despertador nem sequer tocou!
- Mas mãe, eu juro que tinha um
passarinho no meu quarto.
- Acho, filha, que você tem
trabalhado e estudado demais. Está precisando urgentemente de férias – disse
ela e voltou a seu quarto para dormir.
Luíza ainda ficou procurando pelo
passarinho em todos os cantos do quarto, mas não o achou, e encontrou apenas o
desenho o desenho do passarinho que fez na noite anterior.
- Será que você saiu do papel? –
perguntou, e riu com o absurdo da situação, de imaginar que seu desenho ganhara
vida durante alguns instantes e depois voltara ao papel.
Colocou o caderno de desenho no seu
lugar, na escrivaninha, ao lado daqueles velhos lápis de cor, e voltou a
dormir.
- Será? – perguntou, e riu
novamente.
Seu
trabalho naquele dia fora igual ao de tantos outros dias. Olhou, ao longo do
dia, um sem-número de vezes para o relógio, contando as horas para ir embora
direto para casa, pois não teria aula naquela noite. Quando terminou o
expediente, bateu e mal se despediu dos companheiros de trabalho, que a
chamaram para sair, ir a um barzinho para espairecer um pouco, ao que ela
recusou.
Sua mãe não estava em casa quando
chegou, e ela foi direto para o quarto, se trocou, e se sentou à escrivaninha,
abriu o caderno de desenho, pegou os lápis e começou a brincar com eles, sem
ter nada definido quanto àquilo que queria desenhar. Misturou algumas cores,
fez linhas curvas, deu forma, cor e vida, aos poucos, ao que só residia em sua
imaginação, e pouco a pouco, na que há pouco era apenas uma folha de papel em branco,
foi surgindo uma bela flor e, tal qual seu desenho anterior, ficou dotado de
uma beleza e realidade ímpar.
- Esses lápis são maravilhosos e os
desenhos que faço com eles parecem vivos! – disse Luíza, mirando o desenho.
Deixou o caderno aberto e foi
preparar algo para comer. Ficou longos minutos, após a refeição, entre pequenos
afazeres domésticos e a televisão, até que ouviu um barulho leve, quase
imperceptível, vindo de seu quarto. Foi, pé ante pé, até lá. A porta continuava
aberta, a janela, fechada e a luz ainda acesa. Colocou a cabeça na porta,
procurando descobrir o que acontecera, mas não viu nada de estranho. Passeou os
olhos pelo guarda-roupa, pela cama, e quando olhou para a escrivaninha, seus
olhos se arregalaram e ela quase caiu para trás. O que tinha diante de si era
algo inimaginável! Do caderno, onde acabara de desenhar, nascera uma flor. Não
uma flor qualquer, mas aquela flor que ela acabara de desenhar! Prendeu a
respiração, não acreditando no que seus olhos viam. Fechou os olhos para que,
quando os reabrisse, percebesse que a flor tinha sumido. Mas não foi o que
aconteceu! A flor continuava lá, abria lentamente as pétalas e se deixava guiar
numa dança com o suave vento que entrava pela fresta da janela. Luíza passava
as mãos sobre os olhos, incrédula, mas o que tinha diante de si era a mais pura
verdade: a flor que desenhara acabara de ganhar vida!
Entrou no guardo com as pernas mal
conseguindo mantê-la de pé, trêmulas. A respiração estava difícil, presa e
quando chegou até bem próximo da escrivaninha, esticou o pescoço para ver
melhor. Da folha em que há pouco havia feito um desenho, brotara uma flor, da
mesma forma, cor, beleza e delicadeza que criara. Olhou para os lápis ao lado e
só então percebeu que eles eram mágicos!
Chegou mais perto da flor e à muito
custo esticou o braço e abriu as mãos para tocá-la e senti-la, para sentir se
realmente era real. Tocou suavemente uma pétala e sentiu sua delicadeza e
desceu o dedo pelo caule, depois subiu novamente para sentir os pequenos, porém
pontiagudos espinhos.
Boquiaberta, ficou observando a flor
por um longo tempo, até que a viu começar a se deitar, como se murchasse, até
que ficou rente ao papel e novamente se fundiu a ele, voltando a ser apenas um
desenho. Luíza ficou espantada com o que acontecera bem diante de seus olhos.
Pegou os lápis e os observou um a um.
- Vocês são mágicos! – disse, e
soltou uma sonora gargalhada.
Luíza
passou o final de semana inteiro praticamente trancada no quarto, e só abria a
porta, à muito custo, após muita insistência de sua mãe para que saísse dali
nem que fosse para apenas se sentar à mesa e fazer as refeições.
Desenhou, quando sentiu sua vida sem
cor, uma arco-íris, que ficou por longos minutos atravessando de ponta a ponta
o seu quarto. Quando a noite estava muito escura e fria, desenhou um sol, que
prontamente a iluminou e aqueceu. Desenhou personagens que faziam parte de sua
infância para poder brincar e se divertir com eles, voltando a ser a criança
que nunca deixou de ser pelos longos minutos em que eles correram livremente pelo
seu quarto e subiam em sua cama. Quando teve calor, desenhou uma janela aberta
por onde soprou uma suave e refrescante brisa. Fez tantos desenhos naqueles
dois dias que até quando dormia, sonhava que estava a desenhar.
Na segunda-feira, sua mãe,
preocupada, quando veio perguntar se não iria trabalhar, ela alegou estar
doente e que não iria naquele dia!
- O que você tem, filha? – perguntou
sua mãe.
- Sou estou indisposta, mãe, mas não
precisa se preocupar. Eu logo, logo vou estar bem novamente – disse ela, e
abriu a porta do quarto para se mostrar á sua mãe e mostrar que não estava
doente de verdade, mas sim levemente indisposta.
- Tudo bem, então, filha. Fique bem,
e qualquer coisa... – ela interrompeu o que dizia porque ouviu o barulho de uma
voz vindo do quarto da filha – Que barulho foi esse? Quem está aí, Luíza?
- Ninguém, mãe. É só um vídeo que
estou assistindo no computador – respondeu, e fechou a porta antes que a mãe
lhe perguntasse mais alguma coisa ou que a obrigasse a deixar entrar em seu
quarto.
Desenhou até seus dedos doerem e
ficarem calejados, e quando quis experimentar algo diferente e surpreendente,
fez o desenho de uma pequena porta na parede de seu quarto por onde observou o
que havia do outro lado, num mundo paralelo onde só vivia a imaginação e tudo
que ela pudesse criar.
Quanto mais desenhava, mais sentia o
desejo e a necessidade latente de desenhar.
Ficava horas a fio concentrada, buscando perfeição
até o último traço de um desenho, e quando o finalizava, colocava-o à sua
frente e permanecia parada, esperando para que a figura ganhasse vida e ela
pudesse senti-la em sua própria mão.
Desenhou um cachorro com que pudesse brincar durante
à tarde, e depois um gato, só para bajulá-lo e mendigar um pouco de sua
atenção, em seguida fez o desenho perfeito de um papagaio só para poder
ensiná-lo a falar. Fez até um desenho de si mesma só para conversar consigo
própria e ouvir a sua própria opinião sobre determinados assuntos.
Sentia-se leve como há tempos não se sentia, como se
colocar para fora, dar toda aquela vazão à sua arte, à sua imaginação, lhe
tirasse um enorme peso de suas costas.
Não
foi trabalhar no dia seguinte, nem no outro e nem no outro. Deu as mesmas
desculpas para sua mãe e ligou para o trabalho alegando ainda não estar bem
para voltara trabalhar e quanto à universidade, preferiu “tirar férias de uns
dias”.
Fez inúmeros desenhos durante esses
dias, e certa vez até deixou a porta do quarto aberta para que eles corressem
livremente pela casa, subissem no sofá e vissem a si mesmos nos desenhos
animados e filmes exibidos na televisão. Ficou parada, ao lado, observado os
seus desenhos vendo a si mesmos na televisão, e se divertiu com a expressão que
cada um fazia ao se verem envolvidos em alguma enrascada numa cena dos
episódios que passavam na TV.
Nesses dias, a muito custo fechava o
caderno de desenhos e guardava os lápis. Sua vontade era ficar desenhando até
durante as madrugadas e explorar todo aquele seu ímpeto criativo à exaustão.
Certo
dia, quando finalizou um desenho, que foi apontar os lápis antes de guardá-los,
percebeu que eles estavam curtos. Ao se dar conta disso, caiu em desespero,
pois sem aqueles lápis, não mais podia dar vida aos seus desenhos. Saiu de casa
imediatamente, pegou ônibus atrás de ônibus numa busca desesperada pelo ancião
que lhe deu aqueles lápis mágicos. Foi ao centro da cidade, desceu nas paradas
mais movimentadas, andou por ruas, como se seguisse um instinto, à procura
daquele homem. Pegou um ônibus sem saber qual trajeto este fazia e chegou aos
bairros periféricos da cidade, depois subiu em um outro e foi ao outro extremo,
mas em momento algum viu aquele a quem tanto procurava. Em todos os ônibus que
pegou, inclusive, subiram vendedores oferecendo mil e uma coisas, mas nenhum lhe
oferecia lápis mágicos, capazes de trazer à vida os desenhos que fazia.
Desanimada, já voltava para casa num
fim de tarde quando reconheceu sua sombra no meio de uma multidão, numa
movimentada rua. Imediatamente desceu do ônibus e correu em sua direção. O homem
se distanciava dela, pegava uma rua, dobrava uma esquina e sumia de seu campo
de vista por alguns breves segundos. Ela corria, esbarrava numa pessoa ou
noutra, ouvindo uma série de imprecações jogadas ás suas costas, e ela só se
virava e gritava um pedido de desculpas. Chamava-o, mas ele não se virava, não
a ouvia, e parecia abrir cada vez uma maior distância dela. Mas por mais
cansada que estivesse, algo a impelia a apressar ainda mais o passo para
alcançá-lo, até que numa esquina, chegou até ele. Tocou-o no ombro.
- Senhor?
Quando ele lentamente se virou, que
ela o viu frente a frente, não conseguiu disfarçar a sua cara de decepção. Não era
ele!
- Desculpe – foi a única coisa que
conseguiu falar. E voltou caminhando lentamente, arrastando pesadamente os pés
por aquelas ruas atulhadas de gente que há pouco havia atravessado correndo.
Chegou à casa cabisbaixa e foi
direto para seu quarto. Fez alguns poucos desenhos para poder se despedir
daqueles que nos últimos dias tinham sido seus melhores amigos, e guardou os
últimos cotocos de lápis para fazer um último e especial desenho.
Pegou uma folha de papel em branco e deixou sua mão
livre, escolhendo aleatoriamente os lápis de cor, traçando linhas à toa. Durante
muito tempo ficou daquele jeito, desenhando algo que não tinha forma definida, sendo
apenas um amontoado de linhas desconexas e de cores indefinidas. Estava como
que em transe criativo, e só quando deu por si, após longas horas, quando olhou
para o que criara, foi que percebeu que tinha desenhado o estranho velho homem
que lhe dera aqueles lápis mágicos.
Deu os últimos retoques no desenho com o último
cotoco do último lápis, e ficou observando-o, esperando que a magia
acontecesse. De repente, o desenho começou a se mover levemente. Primeiro seus
olhos, que ela pintou de verde, piscaram e mudaram de cor, depois ele balançou
a cabeça de um lado para o outro e quando a viu, sorriu, como se já esperasse
encontrá-la. Foi saindo lentamente do papel e quando ficou frente à frente com
Luíza, pegou sua mão e disse que havia magia em seus dedos, pois eles eram
mágicos, capazes de dar vida a tudo aquilo que desenhava.
- Mas não sou eu quem dou vida aos desenhos, são os
lápis que o senhor me deu!
- Não, Luíza. A magia nunca esteve nos lápis, mas
sim em você, em suas mãos. É você quem imagina, quem desenha, quem dá vida a
tudo aquilo que, com suas habilidosas mãos, cria... Nunca houve magia nenhuma
em nenhum dos lápis...
- Mas e os desenhos que fiz, e você mesmo, que eu
desenhei, como você explica isso, deles, de você, ter ganhado vida?
- Termos saído do papel é uma mera consequência de
sua arte, de sua imaginação.
- Mas...
- Não adianta se ter um lápis mágico se não se tem
magia nas mãos, se não se tem imaginação, se não se é capaz de fazer arte. Do que
adianta magia se não se sabe usá-la? A magia, quem faz acontecer é o artista
com sua imaginação.
Luíza ficou calada, pensativa. Entendia tudo aquilo
que o velho homem mago dizia, mas mesmo assim ainda não acreditava que a magia
estava nela, e sim naqueles lápis de cor. Fechou os olhos e ficou em silêncio,
como se buscasse assim um melhor entendimento a tudo aquilo.
- Os lápis é que são mágicos, que fazem os desenhos
saltar do papel e ganharem vida.
- Não, Luíza! Você é que é mágica, você é quem cria,
quem dá forma, cor e vida a cada desenho que faz, que deixa saltar de sua
imaginação e passar de suas habilidosas e delicadas mãos para o papel. Se eles
saltam do papel, fogem por alguns instantes e ganham uma espécie de um
simulacro de uma vida, isso é uma mera consequência da arte.
Luíza ficou olhando para o velho homem, absorvendo
suas palavras.
- Continue a desenhar Luíza, não com a magia dos
lápis, mas com a magia que há em você... – falando isso, ele começou a diminuir
de tamanho, sendo como que sugado de volta para o papel. – Continue a usar a
infinita magia que há em você, em suas mãos, Luíza – disse ele antes de se
fundir novamente ao papel.
Luíza ficou num profundo silêncio por longos
minutos, olhando fixamente para o desenho. Fechou os olhos e pensou em tudo que
o velho homem dissera. Abriu os olhos e olhou para as próprias mãos, não
acreditando que havia magia nelas. Sentia-se incrédula com as palavras do mago e
estava triste, mas mesmo assim respirou fundo duas ou três vezes, pegou uma
nova folha de papel em branco, os lápis de cor que estavam esquecidos já há
longas semanas, e começou a fazer um simples desenho, mas nele depositou um fragmento
de sua alma. Quando terminou, ficou olhando-o. O desenho não saía do papel, não
se mexia, e ela o jogou no chão e se jogou na cama. Seus olhos se encheram de
lágrimas, mas antes que a primeira transbordasse, escutou um barulho tão seu
conhecido, e o desenho saltara do papel e sorrira para ela. Ela sorriu de volta
e abriu os braços para que o desenho viesse abraçá-la. Ela derramou lágrimas de
profunda alegria e entendeu o quão mágica era, o poder da fantasia e
criatividade que habitava em suas mãos.
Passou, então, a desenhar mais, mais e mais, a
depositar fragmentos de sua alma em cada desenho que fazia, e por conta desses
pequeninos pedaços de alma, por conta da força da magia que ela empregava em
sua arte, os desenhos que fazia passaram a viver não só para ela, mas para
todas as pessoas os contemplavam não só com os olhos, mas sim com a alma.
Dessa vez, se superou limaneto1807.
ResponderExcluirAntes de ler, meus olhos focaram o desenho.
Para minha surpresa, dos longos cabelos emergiu a figura de uma pessoa, sua careca e sua barba...
Para meu espanto, percebi concretizada a magia do poder de sua imaginação. Uau!
E não é que encontrou o caminho para que sua alma se manifeste!
Parabéns por essa criação.
Abç