Já fazia tantos anos, no entanto, nada havia mudado naquela
sala. O cheiro era o mesmo, a posição dos móveis permanecia inalterada e até a
teia de aranha, naquele canto, entre a parede e o teto. A aranha, idêntica
àquela mesma, que tecia vagarosa a sua armadilha, para pegar presas e
sobreviver em sua letargia.
Não sei ao
certo quanto tempo fiquei sem pôr os pés naquela casa, sem ver aquela sala, mas
assim que abri a porta, todas aquelas memórias vieram à minha mente. Os dias de
chuva, em que eu não podia sair, e ficava brincando, sob a vigilância de minha
mãe, bem perto da lareira; as noites longas e frias em que costumava sentar na
poltrona de meu pai enquanto ele não chegava do trabalho. Doces momentos foram
aqueles, que eu já não lembrava, pelo menos até voltar a sentir o frio do metal
da maçaneta daquela porta.
Tudo tão
igual como nas minhas mais distantes lembranças que eu cheguei a escutar o eco
de minha infância reverberando nas paredes, subindo as escadas e chegando até o
meu quarto, lá em cima, quarto este que ficava entre o de meus pais e o de
minhas irmãs. Lembrei quando acordava nas noites escuras e frias, com medo, e
ia bater na porta do quarto de meus pais, e minha mãe vinha abri-la. Já sabia
que era eu, assim que eu batia na porta. Ao ver a porta se abrindo, sentia-me
em segurança, e ia me deitar na cama, entre meu pai e minha mãe.
Ver tudo
aquilo doeu fundo em meu peito, por eu ter ficado tanto tempo longe dessas
lembranças, desse lugar sagrado para mim. Olhei todos os cantos, com o olhar
perdido no tempo e sequer notei a presença de uma pessoa que me observava,
parada, no corredor que dava acesso à sala. Ao vê-la, mesmo tão diferente,
mesmo já tão envelhecida, a reconheci de imediato. Sorri, e ela sorriu para
mim, e eu corri para seus braços, como sempre fazia quando me sentia acuado,
como um menino a correr para os braços da irmã mais velha. Seu abraço
continuava quente e acolhedor. Demoramos longos minutos, um estreitado nos
braços do outro, matando a saudade de longos anos de ausência. Quando, finalmente,
nos separamos, olhamo-nos nos olhos, em seguida eu a observei por inteiro. Ela tinha
envelhecido. Seus longos cabelos castanhos tinham desaparecido, dando lugar a
curtos cabelos brancos como a neve. Sua silhueta não era mais a mesma, sua pele
estava enrugada e seu andar não era mais o mesmo, seguro, e ela precisava se
apoiar numa bengala. Só os seus olhos e o seu sorriso continuava o mesmo. Tantos
anos, tantas mudanças, tanta coisa igual e tanta coisa mudou nesse meio tempo.
Ela me
pegou pela mão, e com seus passos inseguros, me levou para ver como tinha
cuidado bem da casa para manter nossas lembranças, nossos momentos, intocados. Não
trocamos uma única palavra, pois palavras eram desnecessárias naquele momento. Vi
a cozinha e senti o cheiro tão igual. Cheiro de infância, das comidas que minha
mãe fazia, que minha irmã tão bem havia aprendido a fazer igual. Sentei-me
naquela cadeira que eu ocupava sempre nos almoços de domingo e vi, mentalmente,
toda a família reunida, com meu pai sentado na ponta, com minha mãe ao seu
lado. Respirei fundo, pois as lágrimas ameaçavam escapar de meus olhos. Minha irmã
notou a emoção que se apoderava de mim e tocou minha mão. Senti-me, com esse
toque, rejuvenescer anos e a vi, à minha frente, tal como ela havia se mantido
em minha memória.
Levantei-me.
Sentia-me inquieto, e comecei a andar de um lado para o outro. Disse a minha
irmã que precisava ficar a sós, para ver com meus próprios olhos.
Caminhei pela
casa vazia, escutando o eco de meus próprios passos de um passado distante nos
corredores. Cheguei até a escada e me vi novamente o menino que um dia fora,
descendo os degraus de dois em dois. Agora, já velho, tinha que me segurar com
força ao corrimão para subir.
Em cima, os
quartos continuavam arrumados como sempre estiveram. Os lençóis dobrados, as
roupas de dormir em cima da cama, como minha mãe sempre fazia.
No quarto
de meus pais senti uma vontade de me deitar na cama, mas fiquei apenas sentado,
na beirada, contemplando as lembranças.
Escutei passos
no corredor, e pouco depois apareceu à porta minha outra irmã, com que eu
sempre brigava, quando era criança. Ela olhou para mim e sorriu. Notou como eu
tinha envelhecido, que não éramos mais crianças para brigar, e disse apenas que
estava feliz por me ver ali, de volta ao lar, onde tudo tinha começado, e onde
tudo teria seu fim. Depois de falar isso, com suas palavras ainda ecoando, foi
embora, e escutei seus passos descendo a escada.
Aquelas palavras
calara fundo em minha alma e me senti inquieto.
Estava tudo
tão igual, no entanto eu as estava sentindo tão diferente. Talvez eu estivesse
diferente e não percebia a mudança que havia se operado dentro de mim após
tantos anos.
Fui me
olhar num espelho e não reconheci meu próprio rosto refletido. Onde estava
aquele menino? No que ele havia se transformado? O que acontecera em sua vida,
para seus cabelos terem mudado tanto, para sua barba ter crescido, para sua
pele ter ficado tão enrugada e para seus olhos estarem tão vazios e tristes? Olhei
tanto para aquele rosto desconhecido no reflexo do espelho que o vi desaparecer
lentamente, e não mais restar nada além da lembrança do tempo que se passou.
As janelas
estavam todas fechadas, mesmo com a lua maravilhosa que se mostrava lá fora. Senti
o ar pesado e frio da noite e desci as escadas, degrau a degrau, lentamente,
com medo do que poderia vir a me deparar lá embaixo. Sabia, sentia, que algo ou
alguém me esperava na sala, e foi para lá que me dirigi, sem vontade de lá
chegar, com medo, com o mesmo medo do menino que acordava no meio da noite e
corria para o quarto dos pais.
Com passos
incertos, me deixei levar até a sala, onde estavam minhas duas irmãs, de pé, ao
lado do estofado, onde estava sentada a minha mãe, e meu pai, em sua poltrona. Todos
me olharam. Suas aparências mudavam, indo das de minhas lembranças de infância
às de pessoas idosas, que eu vira morrer, que eu cuidei até o final da vida. Que
eu vi, que senti quando deram seus últimos suspiros e que me deram adeus antes
de partirem, deixando-me com a sensação de vazio no peito, com lágrimas
engasgadas na garganta, com a dor da solidão ao verem, um a um, todos irem
embora, me deixando sozinho nessa vida.
Olhei ao
meu redor, procurando algo em que me apoiar, mas até as paredes da casa tinha
sumido, desabadas, não mais restando nada além de escombros de lembranças que
só existiam em minha mente. Olhei para trás e vi a casa toda em ruínas,
esquecida pelo tempo, que não era mais habitada há anos, onde ninguém mais
pisava, até eu voltar, para viver ali meus últimos minutos de vida e relembrar
os momentos mais eternos de toda a minha existência.
Olhei para
a porta e me vi ali, deitado, imóvel, já tão velho, já tão cansado e tornei a
levantar os olhos e percebi que minha mãe se aproximava lentamente. Minhas irmãs
continuavam de pé, e meu pai havia se levantado. Todos esperavam pelo meu
gesto. Olhei mais uma vez para meu corpo no chão, tão envelhecido nos últimos
anos de solidão, e para aqueles que esperavam para me levarem. Segurei a mão de
minha mãe, e ela sorriu, e se tornou a mulher que eu me lembrava de minha mais
terna infância. Senti-me protegido. Minhas irmãs sorriam e meu pai também. Aproximei-me
deles e fui abraçado por todos. Voltei para o seio de minha família, justamente
naquela casa, onde tudo teve o seu início, e onde tudo, agora, chegava ao seu
fim.
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