Naquele distante reino o tesouro real já havia sido maculado
diversas vezes. Peças de ouro foram levadas, tiaras cravejadas de diamantes, amassadas,
vasos de louça fina, de inestimável valor, quebradas, peças de fino cristal,
despedaçadas, cetros, saqueados, taças, arranhadas, coroas, profanadas, sendo
colocadas sobre cabeças de pessoas não dignas de ostentá-las. Da mais valiosas à
mais simples peça do precioso tesouro, todas já haviam sido, de alguma forma, sido
levadas, despedaçadas, jogadas fora, mas sempre o rei as recuperava, as limpava
e fazia com que voltassem a brilhar. Era um trabalho árduo, reconstruir todo o
tesouro peça por peça. Mas aquele era o seu
tesouro, e o rei zelava por ele.
Procurava se
precaver de todas as formas, ficando vigilante, impedindo que qualquer pessoa
se aproximasse de seu castelo e das câmaras onde estavam guardadas as peças do
tesouro, mas, apesar de todo o cuidado, era homem, e como tal, frágil, e em
dias de sua fraqueza, pessoas mal intencionadas aproveitavam-se de seu descuido
para invadir em seu castelo e saquear, quebrar, arranhar e despedaçar o seu
tesouro. No dia seguinte o rei, dando-se conta de seu descuido, voltava a seu
interminável trabalho de recuperar todo o tesouro.
Ano após
ano, mês após mês, semana após semana, dia após dia, nada mudava naquele reino
e o rei, cansado, resolveu erguer um fortaleza intransponível para proteger seu
tesouro. Passou um longo tempo sozinho, encarcerado no alto de um torre,
encontrando a melhor maneira de erigir a fortaleza dentro da qual seu tesouro
estaria a salvo. Ao sair do alto da torre estava envelhecido e cansado, mas em
seus olhos havia um brilho diferente, determinado, cego.
Passou longos
meses cego ao mundo, preocupado só e unicamente com a construção da fortaleza
para proteger o seu tesouro, e nem percebeu que nesse meio tempo nenhuma de
suas valiosas peças fora sequer tocada.
Ergueu altas
e grossas paredes e cavou um profundo fosso. Construiu altas torres que tocavam
as nuvens para vigiar quem quer que se aproximasse, por terra ou por ar. Em cada
canto, havia uma armadilha. Espalhou pesadas pedras impossíveis de serem
arrastadas em todas as portas que davam acesso às câmaras do tesouro.
Quando terminou
de construir, sozinho, toda a fortaleza com suas próprias mãos, ele a
contemplou, trancou a pesada porta e escondeu as chaves.
Deu dois
passos para trás e contemplou novamente a sua fortaleza, onde o seu maior e
mais preciosos tesouro estaria a salvo, e respirou aliviado.
No alto da
torre de seu castelo, todos os dias o rei olhava para a sua fortaleza sabendo
que ali o seu tesouro permaneceria intocado.
Seus dias,
semanas, meses e anos tornaram-se iguais, sempre vendo apenas as paredes da
fortaleza, nunca contemplando a beleza verdadeira de seu tesouro, que, agora,
para ele, era só uma vaga lembrança.
Um dia, ao
se levantar, quando abriu a janela e viu a fortaleza, se perguntou o que aquelas
paredes intransponíveis tão bem protegiam. Havia esquecido de seu próprio
tesouro. Lembrava vagamente que seu súditos, logo que ergueu a fortaleza,
chegavam perto dela, assombrados, para vê-la, mas agora ninguém ousava se
aproximar.
A fortaleza
se incorporou a paisagem, tornando-se um lugar comum, tanto que as pessoas
passaram a nem sequer notá-la, e o rei, que a construí-la para manter um algo a
salvo, algo que ele não se lembrava o que era, esquecera até mesmo do motivo
que o levara a construí-la, a ponto de, mesmo em suas lembranças mais antigas,
imaginava ver o reino como o via hoje. Lembranças e realidades se misturavam e
ele não sabia mais distinguir umas da outras. A fortaleza fazia parte de sua
memória, e sempre estivera, sempre fora ali, intransponível.
Quando não
mais se lembrava de nada do que havia lhe pertencido outrora, enquanto
caminhava sozinho num bosque, voltando de uma caçada, algo brilhante lhe chamou
a atenção. Abaixou-se para ver do que se tratava. Cavou, cavou e cavou, até
encontrar uma taça de ouro que fazia parte de seu tesouro esquecido. Ao ver
aquela taça onde um dia bebera o mais fino vinho, todas as lembranças de seu
tesouro esquecido lhe voltaram à mente. A taça estava suja, mas ainda reluzia
um brilho opaco, quase morto. O rei a banhou com suas lágrimas a taça de ouro,
que logo voltou a brilhar como antes. Quando a viu em todo o esplendor de sua
beleza, virou em direção à fortaleza, lembrando-se de todo o seu tesouro que
jazia ali, esquecido.
Correu,
tropeçando em suas próprias pernas e, ao chegar à porta da fortaleza, bateu
nela com tanta força que feriu os seus pulsos. Havia construído aquela
fortaleza tão forte, tão perfeita, que nem ele mesmo se lembrava como abri-la,
como ultrapassar aquelas paredes para chegar até seu tesouro. Havia esquecido
onde guardara as chaves.
Chorou com
sua impotência, com sua imbecilidade quando resolveu guardar e proteger o seu
tesouro tão bem protegido que havia acabado protegendo-o de si mesmo.
Suas lágrimas
que escorriam pelo seu rosto acabaram por cair em seu peito e lá encontrando um
objeto minúsculo, amarrado a uma finíssima corrente: uma chave. Ele pegou
aquela chave, fechando seu punho sobre ela, e a arrancou da corrente que a
prendia. Enfiou-a na porta, que abriu com um rangido, dando passagem ao lado
interno da fortaleza, com seus fossos, torres de vigia e inúmeras armadilhas.
Dentro da
fortaleza ele havia construído um labirinto, e ele não sabia por onde e como
começar a procurar o seu tesouro. Então fechou os olhos e deixou que seus pés o
guiassem. Escapou das armadilhas, removeu as pedras que estavam em seu caminho como
quem levanta uma folha ou arranca uma pétala de uma flor. Com os olhos fechados
e a mão no peito, ele se deixou levar.
Seu tesouro
estava escondido no coração da fortaleza, e ele, ao encontrá-lo, viu, ao seu
redor, todas aquelas paredes começarem a ruir.
A fortaleza
foi caindo, parede a parede, até não restar mais nada além do Rei e Tesouro.
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