O Rio
Nascido
na mais alta montanha, brotando da velha, dura e áspera rocha, um milagre de
vida. Corro caudaloso, descendo das maiores alturas, tendo que atravessar
sinuosos caminhos, ora virando abruptamente para a direita, ora tendo de saltar
do alto, formando uma cachoeira, para cair sobre o chão duro. Atravesso
caminhos nunca antes visto por olhos humanos, de tão inóspitos que são, tendo
que sentir em meu corpo pedras duras, que me ferem ao mesmo tempo em que me
fortalece. Sou fonte de vida de inúmeros seres, sinto pulsar em meu corpo
inúmeros corações. Minhas águas são cristalinas e frias. No sopé da montanha
corro tranqüilo, muito devagar, quase não me movendo, é onde descanso antes de
voltar a minha corrida desenfreada em direção ao mergulho na imensidão do mar
azul.
É
manhã e o sol aparece encoberto por algumas nuvens, preguiçoso, ainda não de
todo levantado no horizonte. Teima em não querer nascer para um novo dia. Sua
luz ainda fraca, seu calor ainda não aquece, mas, mesmo assim, os pássaros cantam
em seu louvor. Como eu gosto de pássaros! Sinto-me fascinado por suas belezas,
por suas penas multicoloridas, por suas vozes que enchem o ar. Como invejo o
céu por tê-los em seu seio, por senti-los em seu corpo, por fazê-los se sentir
livres; e o sol, por ter, todas as manhãs, músicas cantadas em seu louvor,
entoadas em suas vozes harmoniosas! Eu, por meu lado, tenho em meu corpo
peixes, que os amo, por serem meus filhos, e os abrigo em meu âmago. Mas eles
não cantam para mim, pois suas vozes não podem ser ouvidas.
Ora
corro, ora me arrasto, ora paro, aonde pessoas às vezes vêm e se deixam banhar
por minhas águas frias e cristalinas.
Há um homem
sentado sobre uma pedra à beira de onde descanso, sonolento à luz do sol desta
manhã cinzenta, com as pernas suspensas no ar. Ele parece distraído, olhando
para o céu, sentindo o sol encher seus olhos de luz, sentindo a brisa acariciar
seu rosto e seus ouvidos inundados pelo canto dos pássaros. Lanço uma pequena
onda em sua direção, que não o toca. Então formo outra, maior, que ao chegar
perto dele, estico meus dedos para tocá-lo. Meu toque, frio, o assusta. Mas ele
estica os pés, descalços, até me tocar. O toque de seus pés, quentes e macios,
me afagando, me acalenta. Deixo que ele brinque com minhas águas, formando
pequenas ondulações na superfície, balançando os pés para frente e para trás.
Ele
desce da pedra onde estava sentado e deixa as pernas submersas. Ali meus braços
não alcançam mais do que a altura de seus joelhos, mas me sinto como se o
abraçasse inteiramente. Eu o invejo por ele possuir duas pernas que podem
levá-lo a qualquer lugar, que fazem dele um homem livre, enquanto eu, aqui,
estou preso a esse meu corpo e meus olhos nunca verão outro lugar que não estes
a que estou encarcerado. Sinto-me pequeno em minha finitude, comparado a esse
homem livre.
O
homem se inclina em minha direção e com suas mãos em concha apanha um pouco de
minhas águas para banhar seu rosto. Sinto sua pele quente e seu cheiro, seus
pêlos eriçados pelo toque frio de meus dedos. Então ele se abaixa um pouco e
olha diretamente para mim. Vejo a mim mesmo refletido em seus belos olhos
azuis, tão límpidos, de um azul que me faz lembrar o céu nos dias de verão.
O Homem
Acordo
nas primeiras horas da manhã com o canto dos pássaros e um raio de sol, que
passa pela fresta da janela de meu quarto, incidindo diretamente em meu rosto.
Muito preguiçoso, me sento em minha cama e espero o sono se dissipar pouco a
pouco até eu acordar por completo. Saio de casa em seguida e vou até o rio mais
próximo, que corre vagaroso, no sopé da montanha, e lá me sento às suas margens
numa pedra, a contemplar o céu azul, infinito, sobre minha cabeça e sinto meus
ouvidos se encherem do som do canto dos pássaros. Assim me sinto em paz, com a
suave e fria brisa matutina a acariciar meu rosto.
Estou
perdido em meus devaneios, sentindo uma paz de espírito me invadir, quando
sinto roçar em meus pés algo frio, o que me assusta. Olho para baixo, depois
para frente e me dou conta do rio de águas límpidas e cristalinas que se
estende à minha frente. Deixo meus olhos se perderem a distância, fixando-se
num ponto longínquo, onde o rio encontra o mar. Olho para o céu sobre minha
cabeça, olho para o mar ao longe e o rio à minha frente e me dou conta de minha
pequenez. Sinto-me insignificante, como um grão de areia numa enorme duna à
beira mar, carregada, movimentando-se ao sabor do vento.
Tiro
minhas sandálias e salto dentro do rio, que é tão raso que mal alcança meus
joelhos. O toque daquela água fria faz com que todos os pêlos de meu corpo se
ericem. Para espantar o frio, resolvo lavar o rosto com aquela água fria, e
mergulho minhas mãos e, embora muito da água escoe por entre meus dedos, trago
um pouco para banhar minha face. Quando as águas se acalmam, vejo a minha face refletida
naquelas águas límpidas. Fico a me contemplar por um curto tempo e acordo de
meu devaneio quando ouço, ao longe, o barulho de um trovão anunciado uma
tempestade que se aproxima. Saio apressado de dentro d’água e, caminhando
descalço, sinto as pedras duras e afiadas como o gume de uma faca me ferindo os
pés.
Caminhava
tão apressado que por muito pouco não vi o milagre da natureza que brotava
daquele solo estéril, surgido por entre aquelas pedras ásperas e duras,
projetando-se para o alto, em busca de sol, luz e ar. Me abaixo para melhor
contemplar aquele minúsculo e tão belo ser, aquela tão delicada e majestosa
flor. Muito delicadamente, aproximo meus dedos indelicados e grosseiros de suas
diminutas pétalas, e sinto o toque de seda de seu corpo. Inclino-me um pouco
mais a fim de aproximar meu nariz da flor e sentir o seu delicado e inebriante
perfume. Inspiro profundamente duas ou três vezes antes de me reerguer. Fico de
joelhos a contemplá-la. Como a invejo por ser tão bela, tão delicada e determinada,
por conseguir surgir e sobreviver a tamanhas adversidades e nascer e viver
naquele terreno tão hostil e pedregoso. Aproximo novamente minha mão da flor e
seguro entre meus dedos seu delicado e fino caule. Muito suavemente, eu o
seguro entre meus dedos para arrancá-la daquele chão. Seus pequenos espinhos me
furam e algumas gotas de sangue já surgem por entre os dedos, mas suporto a
dor, pois pretendo ter para mim aquela efêmera beleza, aquela vida, que passa
tão rápido quanto um piscar de olhos.
Ao
colher aquela flor, a levo novamente até próximo a meu rosto para sentir
novamente seu perfume. Sinto suas delicadas pétalas em contato com meus dedos.
Ergo-me sobressaltado ao escutar outro trovão, dessa vez mais perto e olho para
o céu e vejo as nuvens carregadas que se aproximam.
A Flor
Minha
semente foi deixada aqui, nesse solo estéril, cheio de pedras e duro, não sei
por quem. A germinação foi difícil, mas consegui lançar raízes profundas nesse
chão; raízes tão fortes que eu julgava que nada poderia me tirar daquele lugar.
Mas eu não queria só germinar, eu queria nascer, ver a luz do sol, sentir o
vento a me acariciar.
Pouco
a pouco fui crescendo e me levantando, e só ao chegar a superfície me dei conta
do lugar em que tinha germinado. Era noite quando eu saí. Senti o vento frio,
cortante, que me congelava e machucava. Olhei para o céu azul estrelado, mas
meus olhos ainda pouco viam, pois minhas pétalas não estavam prontas, ainda,
para serem abertas para verem e serem vistas e admiradas. Para me proteger,
criei espinhos ao longo de todo o meu corpo.
Numa
manhã fria, quando o sol mal acabara de nascer, foi que desabrochei. E a partir
daquele dia, todas as manhãs, logo que os primeiros raios de sol surgiam no
horizonte, eu via os pássaros voando livremente pelo céu, cantando em louvor ao
sol, ao nascimento de um novo dia. Alguns se aproximavam de mim e ficavam a me
fitar, como que estranhando a minha presença ali, como se eu fosse um corpo
estranho, uma rara beleza surgida naquele lugar. Logo outros pássaros se
aproximavam, como se eu representasse, ali, um oásis no meio daquele deserto.
Insetos também se aproximavam de mim, faziam com que o ar se enchesse de sua
cantoria monocórdia, recolhiam meu pólen para depositá-lo em outra flor, como
se esses tão diminutos seres vivos, tão frágeis e tão livres, tivessem a tarefa
de levar o pouco que eu tinha para oferecer. Mas de quem eu mais gostava era
dos beija-flores, tão belos, tão perfeitos em seu balé sincronizado a que
dançavam em pleno ar. E seus beijos, tão inebriantes, faziam com que eu, em meu
devaneio, desejasse me livrar de minhas raízes e voar junto com eles, tornar-me
um beija-flor voar dançar livremente pele céu e beijar outras flores iguais a
mim.
Numa
manhã em que o sol mal havia nascido no horizonte e nuvens encobriam o céu
azul, um homem aproximou-se. Muito delicadamente, aproximou seus dedos de mim e
acariciou minhas pétalas, inclinou seu rosto e deixou-o tão próximo ao meu que
senti o seu cheiro. Podia sentir a maciez de sua pele, o calor de seu corpo.
Ele ficou um tempo a contemplar-me. Estendeu sua mão para me tocar, segurando
firmemente meu corpo. Meus espinhos, que eu julgava tão fortes, se mostraram
tão frágeis e delicados quanto minhas pétalas. Lutei contra ele, mas minhas
forças eram insuficientes para vencê-lo. Meus espinhos, apesar de frágeis,
feriram a sua pele e seu sangue, rubro, maculou minhas pétalas brancas.
Após
arrancas minhas raízes, ele voltou a me fitar e me trouxe novamente para junto
de si, a fim de sentir o meu cheiro. Agonizando, eu o odiei com todas as forças
que ainda me restavam por sua mesquinhez, por ele me querer para si, por
desejar ter a minha beleza, pois era apenas isso que seus olhos viam: beleza.
Colocou-me
junto a seu peito. Eu ouvia o seu coração bater acelerado e sentia o calor de
seu corpo. Seus punhos, cerrados, me escondiam, não me deixavam ver o sol, e
quando se abriram ele me entregava a outra pessoa, a uma mulher, que sorriu ao
me ver. Meus espinhos feriram sua delicada mão, quando ele me entregou, mas ela
não me soltou. Tocou minhas pétalas com as pontas dos dedos e sorriu. Seu
sorriso era tão lindo quanto o amanhecer. Aproximou seu rosto do meu e me
beijou. Seus lábios, seu beijo era tão delicado quanto o dos beija-flores. Ela
era tão linda, tão pura e tão verdadeira que eu a invejei, que eu a quis para
mim, queria lhe dar raízes para mantê-la para sempre comigo.
A Mulher
Normalmente
o céu, naquela época do ano, se mostrava de um azul tão profundo, tão belo, de
nuvens tão brancas. No entanto, naquele dia ele mal se mostrava por entre as
nuvens, tão carregadas, de um cinza escuro, feio. Estava começando a me
preocupar, com meu amado que não chegava. Escutei ao longe o ribombar do
primeiro trovão, que me fez estremecer por dentro, com medo da chuva que se
avizinhava. Temi que ele não chegasse e eu fosse obrigada a ficar sozinha
naquela casa, que ficava tão grande, quando ele não estava. Foi então que
resolvi ir a seu encontro, pelo mesmo caminho que ele percorria todas as manhãs
em que vinha se encontrar comigo. Mal andei alguns metros quando as primeiras
gotas d’água começaram a cair do céu. A princípio tão finas e agradáveis que
mal molhavam meu rosto, mas sim me acariciava a pele como o suave toque dos
dedos de um amante.
Andei mais
alguns metros sob aquela chuva que começava a precipitar com maior intensidade,
e instintivamente comecei a apressar os passos e, sem que percebesse, logo
estava correndo. Quando o vi, à distância, correndo, meio inclinado, com os
punhos fechados sob o queixo, como que a proteger algo, abri meus braços para
recebê-lo. Assim que ele olhou para frente e me viu, abriu um sorriso. Vê-lo
sorrir era o mesmo que ver as nuvens que encobriam o céu se abrirem e o sol
aparecer majestoso para iluminar o meu dia. Abraçamos-nos longamente e, ao nos
afastarmos, ele me mostrou o que trazia consigo, protegendo com tanto cuidado
da chuva: uma linda e delicada flor. Possuía uma haste longa, de um verde
vívido, e lindas e delicadas pétalas brancas. Eu não resisti e a segurei em
minhas mãos com tanta pressa que me esqueci de ter cuidado com seus espinhos,
que me feriram a mão. Apesar da dor que sentia, eu não a larguei. A fascinação
de segurar algo tão belo em minhas mãos compensava qualquer dor causada por
qualquer ferimento.
A
flor era linda, como eu jamais havia visto. Pena que sua beleza fosse
passageira, que sua vida durasse tão pouco. Mas, mesmo assim, eu me sentia
fascinada e invejava as flores, pois elas, mesmo em suas vidas tão curtas, as
viviam de forma tão intensa, brilhavam tanto em sua beleza que permaneciam
vivas para sempre nas memórias daqueles que as contemplaram.
A
chuva continuava a cair a minha volta e sobre minha cabeça, os trovões
continuavam a ribombar e os raios a cair, quando me dei conta de que estava
inteiramente encharcada e que meu amado me esperava, pacientemente, a meu lado,
para voltarmos ao aconchego do lar. Segurei sua mão e sorri. Começamos a correr
juntos, quando tropecei e na queda acabei largando a flor que ele me
presenteara. Não a encontrei, pois a chuva caía de forma tão intensa que mal se
podia ver o que havia a frente. Ergui-me triste por ter deixado escapar aquela
flor tão bela, e fui para casa, tendo, sobre minha cabeça, o céu que desabava,
como se estivesse a chorar pela perda daquele ser vivo tão belo e delicado,
como se chorasse por não mais poder contemplar aquela tão sublime e delicada
beleza.
A Nuvem de Chuva
Daqui
de cima, do alto da montanha, para onde fui trazida pelos ventos, vejo o imenso
vale a se descortinar a minha frente. Tão belo, com seu rio que nasce do
coração da montanha e percorre longos e tortuosos caminhos até poder descansar,
tranqüilo, na planície, até ter que reiniciar sua descida, rumo ao mergulho no
mar azul, ao longe. Olho o sol, nascendo às minhas costas, e sinto seu calor a me
aquecer, ouço as aves cantando em seu louvor. Desejo poder me aproximar dessas
aves, tão belas e diminutas, senti-las voando ao meu redor, me tocando,
brincando com meu corpo.
O
canto das aves me atrai, sempre belo, harmonioso, e resolvo me aproximar. Mas
quando o faço, elas fogem, pois acabo lançando uma enorme e escura sombra aos
meus pés, encobrindo a terra, roubando assim a luz do sol, e é em louvor dele
que os pássaros cantam. Faz-se um silêncio sepulcral, e me sinto culpada por
isso. Sinto-me triste, como jamais me senti. Tudo que eu mais queria era me
aproximar dos pássaros, poder tocá-los e senti-los voando ao meu redor. Mas
eles fogem de mim. Algumas lágrimas me vêm aos olhos, e não consigo
suprimi-las, e elas acabam por se precipitar, indo cair lá embaixo. E quanto
mais choro, mais os pássaros fogem de mim e maior é a minha dor. Quero fugir,
ir embora, para longe, para o lugar mais longínquo onde os ventos possam me
carregar, mas o enorme peso em meu peito, o ferimento causado pela decepção que
sofri me impede que me reerga e retome o meu caminho.
Estou
tão baixa que quase posso tocar com meus dedos as copas das árvores mais altas,
onde estão escondidos os pássaros a quem tanto amo. Mas eles estão tão
assustados que mal se movem. Olham para o alto e não me vêem, pois só têm olhos
para o sol, a quem procuram desesperadamente.
Um
pouco mais abaixo vejo uma mulher, que mesmo assustada, enfrenta-me, foge e me
procura, e sinto todas as minhas lágrimas percorrendo seu corpo e sinto seu
calor. Ela se sente feliz ao encontrar seu amado. Os dois se abraçam e se
beijam. Ela recebe das mãos dele um presente, uma linda flor, de um branco que
fora tão imaculado quando eu fui um dia, mas que está manchada, da mesma forma
que estou.
A
mulher se sente feliz. E eu posso sentir isso, pois sou parte dela. Ela se
deixa banhar por minhas lágrimas, por um tempo, antes de voltar para o abrigo
de sua casa, como se a fugir e se esconder de mim.
Em
sua fuga, ela acaba deixando escapar por entre seus dedos a sua tão preciosa
flor, que é carregada por minhas águas em direção ao rio.
Sinto-me
leve, com aquela flor em meus braços, indo em direção ao rio. Aquela flor é
como um canto de louvor que entrego ao rio, como os pássaros entregam seus
cantos ao sol.
Eis
que, em minha queda, tendo a flor em meus braços, antes de mergulhar por
inteiro e me unir ao rio, olho para o alto e vejo surgir por entre as alvas
nuvens que surgem no céu um arco-íris, tão lindo e multicolorido quanto são as
penas dos pássaros que voam livres no céu azul depois que me entrego aos braços
do rio.
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