Aquela era uma livraria antiga, a primeira a abrir as portas
naquela rua. Era administrada pela mesma família desde a sua abertura, um
negócio de família, onde os filhos, desde cedo, brincavam por entre as
prateleiras de livros e até sentavam no colo de um ou outro cliente. Depois,
ainda criança, quando já sabiam ler e escrever começavam no ofício de guardador
de livros, organizado-os em ordem alfabética nas prateleiras, catalogando-os
num velho fichário idêntico ao primeiro fichário da livraria.
A livraria
continuava idêntica, na estrutura, a que abriu as portas pela primeira vez nos
idos anos do início do século. Só foram incluídas algumas estantes novas, duas
mesas para exposição dos livros mais procurados pelos clientes, uma
caixa-registradora nova e algumas poltronas, para que os clientes pudessem se
sentar e ler algumas páginas de um ou outro livro antes de decidir comprá-lo. Nas
paredes estavam algumas fotos antigas, onde ficaram guardados os momentos numa
folha já amarelada pelo tempo, os primeiros e mais especiais clientes, um ou
outro escritor que tinha vindo à cidade e aproveitou a ocasião para conhecer a
tão famosa livraria, e tinha realizado uma tarde ou noite de autógrafos, para
promover seu novo livro, e fotos de todos os que estiveram à frente de negócio.
Aquela que
estava à frente do negócio já era a quarta geração da família, e a quinta, em
breve, iria tomar seu lugar. Cada geração ficava, em média, o tempo necessário,
treinando, ensinando, apresentando os clientes ao que tomaria o negócio. Quando
via-se que esta estava pronta, se retirava gradualmente e ia gozar de sua
aposentadoria, lendo todos os livros que quisesse.
Todos os
dias, as portas eram abertas pontualmente às 8 horas, mas o livreiro chegava
antes, segundo ele, para ter a livraria só para si antes da entrada do primeiro
cliente. Às vezes ia à banca, do outro lado da rua, trocava algumas palavras
corteses com o jornaleiro, que já estava instalado ali há 20 anos, para comprar
seu jornal e, vez por outra, alguma revista interessante.
Naquele dia
foi o jornaleiro quem puxou conversa:
- Será que
esse projeto da prefeitura, para revitalizar essa rua, vai dar certo? Será que
nós seremos muito afetados? – perguntou ele.
O livreiro,
que só estava sabendo por alto do assunto, nada pôde falar.
- Eu fico
com um certo receio, pois já estou aqui há tantos anos, e temo ser expulso,
tendo que ir abrir minha banca noutro local, longe de meus tão antigos
clientes.
Ficaram trocando
palavras sobre aquele assunto que tanto afligia ao jornaleiro, conjeturando o
futuro incerto.
A livraria
foi aberta quase que na mesma hora que o primeiro cliente abriu a porta, e o
livreiro não teve tempo de tê-la só para si por alguns minutos, não poder
respirá-la e andar a toda por entre as estantes, tocar as capas dos livros,
abri-los à toa numa página qualquer e lê-los.
Não eram
muitos e tão numerosos os clientes que entravam por aquela porta, mas eram
clientes antigos, gerações de famílias que se habituaram a frequentar aquele
ambiente tão acolhedor, para comprar livros ou, por vezes até, só para ter uma
conversa prazerosa com o livreiro, para pegar, com ele, uma sugestão para a
próxima leitura.
Era um
lugar silencioso, mas de um silêncio acolhedor, reconfortante, que transmitia
paz e segurança. Tinha-se a impressão, ao entrar por aquela porta, que
estava-se voltando alguns anos no tempo, para um tempo em que o tempo não
interesse, tudo o que interessa são os livros.
À tarde,
depois do almoço, o filho do livreiro chegava, vindo da escola, e, ainda
fardado, jogava sua mochila num canto atrás do balcão e começava sua jornada de
trabalho, perguntava ao pai o que tinha chegado de novidade, quem tinha
comprado o quê, pegava o fichário e ia fazer suas anotações. Em seguida, ia
andar pela livraria, retirava livros das estantes, sentia-os, atendia um ou
outro cliente e só ia para casa à noite, junto com o pai, quando a livraria
fechava.
O pai
olhava orgulhoso para o filho, que iria substituí-lo logo, assim que terminasse
os estudos. O jovem era apaixonado por livros e se não fosse ainda tão novo, já
estaria á frente do negócio e o pai poderia estar se aposentando. Mas ainda
faltavam alguns anos para isso acontecer, e o pai podia usufruir da livraria
para si, enquanto não a passava para o filho.
Dia após
dia, a mesma rotina, os mesmos clientes, conversas parecidas, indicações de
leituras, tudo na mais perfeita paz, até que num final da tarde, quando já se
preparava para fechar a livraria, o jornaleiro entrou, esbaforido, com um papel
na mão, brandindo-o para que o livreiro o visse. Este o leu, mas na pressa do
outro, não entendeu o motivo de tamanha agitação.
- Você não
percebe? Com esse projeto maluco da prefeitura, estão solicitando que eu mude a
minha banca para outro lugar. Em outras palavras: estou sendo expulso de minha
casa – e começou a soluçar. O livreiro não sabia como reagir nem o que falar
para consolar o outro. Se o contrário estivesse acontecendo, talvez ele até se
sentisse do mesmo jeito. Aquela livraria, para ele, era muito mais do que um
negócio de família, era a sua vida, e aquele ambiente era a sua casa.
Logo as
notícias se espalharam e vários comerciantes começaram a temer serem convocados
e solicitados pela prefeitura para se mudarem, para que, no lugar de uma loja,
fosse passar uma rua ou plantada uma árvore, instalado um banco de praça ou o
que se passasse na cabeça do urbanista à frente daquele projeto.
Dias se
passaram e nada aconteceu. Havia, no ar, um clima de expectativa. Mas, com o
passar dos dias, o assunto logo foi esquecido, até que numa manhã, quando o
livreiro, concentrado em seu trabalho, tendo terminado de atender a um cliente,
escutou barulho de pessoas falando, tentando conter um alguém, que chorava descontroladamente
sentado na calçada em frente à livraria. Saiu para ver do que se tratava, e
encontrou o seu amigo, jornaleiro, aos prantos.
- Eles
estão retirando tudo... encaixotando tudo... Vão demolir a minha casa – dizia ele,
com a voz embargada pelas lágrimas. Só então, ao ouvir aquilo, o livreiro olhou
para o outro lado da rua e viu funcionários da prefeitura encaixotando todas as
revistas. Viu, também, máquinas da prefeitura, que seriam utilizadas na
demolição da banca.
Não queria,
mas não pôde deixar de olhar para o horror que se descortinava perante seus
olhos. Tendo acabado de encaixotar tudo do jornaleiro e jogar dentro de um
caminhão, homens, munidos de ferramentas de demolição, começaram a quebrar as
paredes da banca sem nenhum dó para os rogos do jornaleiro, sentado na calçada,
chorando como uma criança. A banca, que fora construída ao longo de tantos
anos, viera abaixo em poucos minutos, e uma história estava sendo apagada, como
se nunca tivesse existido.
Na livraria,
o livreiro não sabia o que pensar de tudo aquilo. Seu filho, que tinha acabado
de chegar da escola e começava o seu ritual diário, perguntava ao pai o que
estava acontecendo, ao que ele nada respondeu. Disse apenas que precisava
fechar a livraria mais cedo, a primeira vez em muitos anos, e ir para casa.
Mal as obras
tiveram início, a especulação começou. Vários comerciantes da rua já estavam
recebendo propostas para vender seus pontos para grandes empresas, que queriam
abrir seus negócios na que seria a principal rua de comércio de toda a cidade.
A loja de tecidos, que era administrada por uma mesma família há anos, fora
vendida, assim como a sapataria, a joalheria e várias e vários outras lojas
foram sendo fechadas para dar lugar a outras, maiores e mais modernas. Somente a
livraria parecia incólume, alheia a tudo que se passava na vizinhança.
Os clientes não deixaram de
frequentar a livraria, embora estivessem aparecendo com menos frequência, e ficavam
cada vez por menos tempo perdidos numa agradável conversa com o livreiro.
Num final de tarde, quando já se
preparava para fechar a livraria, num dia em que seu filho não viera trabalhar
por que teria, no dia seguinte uma importante prova e tinha que estudar, a
porta foi aberta de supetão e por ela entrou um homem a quem o livreiro nunca
tinha visto. Um cliente novo, por certo, ele pensou. O homem não se dirigiu
diretamente a ele, pelo contrário, parecia muito mais interessado em analisar
cada detalhe, cada canto da livraria. Olhava as estantes, as paredes, contava
as distâncias, mas não pôs, sequer uma vez, os olhos nos livros.
- Posso ajudar, senhor? Está, por
um acaso, interessado em algum livro em específico? – perguntou o livreiro.
Só quando ouviu um alguém lhe
dirigindo a palavra foi que o homem se deu conta de que havia uma pessoa
naquela livraria.
- Oi. O senhor é o dono dessa
livraria?
- Sou, sim. O senhor é...?
- Eu estou interessado em comprar
essa livraria. Já comprei algumas lojas, as suas vizinhas inclusive, e pretendo
abrir uma grande loja nessa rua.
O livreiro demorou o que lhe
pareceu uma eternidade para entender o que o outro tinha falado. Jamais havia
se passado por sua cabeça a mais remota ideia de fechar ou vender a livraria. O
que diria seu pai, seu avô e seu bisavô? O que seu filho passaria a pensar a
seu respeito?
- Essa livraria não está à venda –
falou, em tom de voz baixo, mas com convicção.
- Tudo pode estar à venda, amigo,
basta você me dizer qual seu preço, que eu pago – disse o homem, com mais
convicção ainda.
- Essa livraria não – disse. Saiu
de trás do balcão e, gentilmente, conduziu o homem até a saída.
- Eu voltarei dentro de alguns
dias, para ver se o senhor já mudou de ideia – o homem ainda disse antes de ter
a porta fechada às suas costas.
O livreiro se jogou numa poltrona
e lá ficou sentado por longos minutos. Não percebeu a entrada de um ou outro
cliente, que saiu sem comprar nada. Estava abalado. Havia falado com convicção
de algo que não iria acontecer, a venda da livraria, mas, mesmo assim, estava
abalado. Fechou, pela segunda vez em um mês, a livraria mais cedo e foi para
casa.
As obras em todas as lojas da rua
começaram. Era muito barulho, poeira, operários andando de um lado para o outro
com suas ferramentas sobre os ombros e pouquíssimos clientes, freqüentando as
pouquíssimas lojas que ainda estavam com as portas abertas. As lojas vizinhas à
livraria tinham sido demolidas e, em seus lugares fora construída uma Megaloja
vendendo todo tipo de artigo, inclusive livros.
Aos poucos, os poucos clientes
que ainda continuavam frequentando a livraria, deixaram de aparecer, e livraria
perdeu parte de sua vida, do motivo de sua existência. Sem clientes, não há
leitores, sem leitores, não há livraria.
Pai e filho ficavam a tarde
inteira juntos, sozinhos na livraria, arrumando os livros mil e uma vezes nas
estantes, sem tocar, nunca, no assunto do que estava acontecendo ao redor.
A livraria, pela primeira vez
desde a sua abertura, começou a dar prejuízo, muito provocado pela falta de
clientes, e o livreiro, pela primeira vez desde que tomou a frente do negócio,
viu-se mergulhado numa situação em que não sabia como lidar. Sentia-se perdido,
sem saber como agir, sem ter a quem recorrer para lhe salvar daquela situação.
Um dia, quando estava para fechar
a livraria, pediu para o filho ir para casa, pois ele precisava ficar um pouco
a sós entre os livros. Começou a andar de um lado para outro, tocando os
livros, conversando com eles, olhando para as fotografias emolduradas,
penduradas nas paredes. Fez inúmeras perguntas aos que já estiveram em seu
lugar, à frente da livraria, mas que, diante daquela situação, não tinham nada
a lhe responder. Chorou sozinho e seus soluços ecoaram nas estantes, em todos
os cantos da livraria. Dormiu, naquela noite, no chão da livraria.
Na manhã seguinte, ao abrir os
olhos, demorou um pouco para entender onde estava, mas logo se lembrou das
lágrimas que havia derramado na noite anterior. Chorou novamente dolorosas
lágrimas, que escorriam pelo seu rosto e acabavam pingando no chão da livraria,
e logo formaram uma pequena poça.
Sentia-se inteiramente perdido. Se
pudesse voltar no tempo, teria, na época em que seu pai lhe passou a livraria,
dito que não poderia tomar a frente do negócio, pois não seria capaz de lidar
com a situação que se apresentava, agora, para ele, no presente. Se pudesse
adiantar o tempo, se veria no futuro e contemplaria a vida que o filho não
teria. Pediu desculpas para os dois, para seu pai e para seu filho, e trôpego,
começou a andar pela livraria, encaixotando os livros cuidadosamente, um a um.
Perto do final daquela manhã, a
porta da livraria se abriu, dando passagem ao empresário, que sorriu ante ao
que via.
- Vi que mudou de ideia – disse ele,
com um sorriso estampado no rosto.
O livreiro nada respondeu,
continuando a guardar os livros. Deixou por último as fotografias.
O empresário assistia a tudo isso
calado, sorrindo consigo mesmo, sem perceber a dor que afligira ao outro.
Quando o livreiro terminou de
guardar tudo, justo na hora em que seu filho chegara, olhou para o outro, que
se mantivera afastado, num canto, só observando o tempo todo e lhe disse que
tinha acabado. O empresário, então, se levantou, fez um chegue e o entregou ao
livreiro.
- Você fez um excelente negócio –
disse ele.
O livreiro nada falou. Dobrou o
cheque, guardou-o no bolso e foi até o filho, que estava parado, no meio da
livraria, entre as estantes vazias, e o abraçou.
- Desculpe, filho. Desculpe-me,
por favor – e chorou lágrimas silenciosas no ombro dele.
O empresário assistiu a tudo
insensível, sem qualquer vestígio de sorriso no rosto.
Saíram, então, da livraria, e
coube ao livreiro fechar, pela última vez, a porta, entregando as chaves ao
empresário.
Pai e filho caminharam abraçados,
cada um perdido em seus próprios pensamentos, em sua imensa tristeza.
Quisera que isso nunca tivesse acontecido de verdade... As livrarias, hoje, são negócios para vender papel e não literatura. Há alguns empreendimentos que sobrevivem bravamente. Para esses, aplaudimos de pé!
ResponderExcluir