Hoje
faz vinte anos que meu pai morreu. Estranho eu lembrar sua morte, logo hoje,
quando julgava já ter superado todo o remorso que senti durante meses após tudo
aquilo que se passou.
Fiquei meses e anos, após a morte de
meu pai, sofrendo com remorso, remoendo um sentimento de culpa por não ter
feito aquilo que deveria por aquele que me dava tudo sem nada pedir em troca.
Ele, que sempre fora tão humilde em toda a sua vida, que sempre cuidara dos
filhos, sendo um pai zeloso, principalmente comigo, seu único filho homem, o
mais novo.
De minha mãe eu não guardo
lembranças próprias em minha mente, pois ela morreu poucos meses após o meu
nascimento. Tudo que sei sobre ela me foi dito por parentes ou por minhas irmãs
mais velhas, que sempre cuidaram de mim, como que para compensar a perda, sendo
a presença da mãe que não tive.
Com meu pai eu tive pouco contato
nos primeiros anos, pois ele passava maior parte do dia fora, trabalhando,
saindo muito cedo de casa, quando eu ainda dormia, e chegando muito tarde, quando
eu já estava deitado. No entanto, sempre fora uma presença constante em minha
vida, mesmo sem estar tão presente.
As pessoas falavam que com a morte
de minha mãe ele ficou muito abalado, tendo quase enlouquecido. Ficava horas a
fio parado, num canto da casa, sem se mover, ou movendo apenas os lábios, como
se falasse sozinho, com a própria sombra ou com as suas lembranças. Ficou meses
inteiros sem sair de casa, sem falar com ninguém, até que uma de suas irmãs,
minha tia, surgiu, como que mandada pelo céu para ajudar-nos, e fez o meu pai
retomar sua vida e a nossa, uma vez que dependíamos inteiramente dele, apesar
da empregada que havia em nossa casa ter cuidado de tudo nesse período, quando
meu pai esteve tão ausente.
Raramente o víamos em casa, primeiro
porque ele trabalhava muito, segundo porque, pelo que falavam, ele nos evitava
pelo simples motivos de termos, todos, eu e minhas irmãs, muita semelhança com
minha mãe, principalmente os olhos, e essa semelhança trazia lembranças
dolorosas para aquele homem.
Só fui ter contato de verdade, mais
próximo, de filho pra pai, quando já tinha quatro anos, quando ele ficou doente
e foi obrigado a ficar em casa por vários dias. Como minhas irmãs mais velhas
passavam o dia fora, umas estudando, outras já trabalhando, e as que tinham
idade próxima a minha passavam a maior parte do dia no colégio, ficando eu
muitas vezes sozinho em casa, aproveitei a oportunidade para me aproximar dele,
daquele homem que tão poucas vezes via, e mesmo assim tão brevemente.
Lembro como se tudo tivesse
acontecido há uma semana, do dia em que vi a porta daquele quarto aberta.
Estranhei, pois ela ficava sempre trancada e eu nunca havia entrado ali. Pé
ante pé, fui me aproximando e olhei para dentro. Não havia ninguém ali além dele,
deitado, dormindo. Movido pela curiosidade, entrei, tendo cuidado para não
fazer barulho e acordá-lo. Cheguei ao pé de sua cama e o observei, inteiramente
escondido por baixo daqueles lençois. Só se via seu rosto. Ele estava tão
quieto como se sequer respirasse e eu, temendo que algo lhe tivesse acontecido
enquanto dormia, aproximei minha mão até tocá-lo na testa. Ele ardia em febre e
estava suado e sua respiração era suave, seu peito quase não se movendo por
baixo dos lençois quando inspirava e expirava. Quando o toquei, recuei o braço
imediatamente, pois ele abriu os olhos e olhou para mim, com um olhar de quem
não me reconhecia. Olhou detidamente para mim por alguns segundos, até que,
como se tivesse resgatado em sua memória quem eu era, abriu um sorriso. Afastou
os lençois e me deu sua mão, que eu segurei, acredito que pela primeira vez na
vida. Ele apertou minha mão com força, e senti meus dedos doerem, mas não
reclamei, pois aquele aperto de mão estava repleto de carinho, como um pedido sincero
de desculpas.
Ele se afastou um pouco para que eu
me sentasse na cama, ao seu lado.
Nunca antes tinha estado tão próximo
ao ele.
Nada falamos naquela ocasião,
ficando apenas trocando olhares e sorrisos que diziam mais do que as palavras
podiam exprimir.
A partir de então, eu ia a seu
quarto todos os dias e ficava lá, cuidando dele, e só saía de lá nos braços de
alguma empregada, que me levava para minha cama, apesar da insistência de meu
pai, em querer que me deixassem ali, para dormir com ele, ao seu lado.
Fiquei triste quando soube que ele
já estava melhor, que voltaria ao trabalho, tendo a certeza de que ele voltaria
a ser o homem ausente-presente que sempre fora. Mas a nossa aproximação o fez
mudar completamente a sua postura dentro de casa. Agora ele passou a só sair
após tomar o café com toda a família reunida e a chegar cedo a casa, para poder
nos colocar para dormir.
Foi com grande estranhamento que
minha tia, que era quem cuidava de tudo em nossa casa, o viu pela primeira vez
tomando café-da-manhã conosco. Ele apenas sorriu e indicou uma cadeira onde ela
deveria se sentar.
Ele, desejoso de correr atrás do
tempo perdido, fazia de tudo para estar sempre próximo, de mim e de minhas
irmãs, e cuidar de tudo em casa. Nunca havia pedido desculpas por ter estado
tão ausente durante tanto tempo, mas seus olhos diziam o quão arrependido
estava, do quão egoísta tinha sido, fechando em sua dor e solidão, enquanto
seus filhos, que tanto precisavam dele, sofriam tanto com sua ausência, pela
morte da mãe e morte-em-vida do pai.
Todos os finais de semana saíamos,
ele, eu e vez por outra alguma de minhas irmãs, das mais novas, pois as mais
velhas nunca queriam nos acompanhar.
Íamos a parques ou à praia de uma
cidade próxima, visitávamos parentes que nem eu nem sabia que tinha.
Aqueles foram dos momentos mais
felizes de minha vida.
Muitas vezes eu me levantava à noite
e batia à porta de seu quarto e perguntava se podia dormir ali, com ele. Mesmo
tendo sido acordado no melhor do sono, ele sorria e me dava passagem. Eu corria
e me jogava na cama e antes mesmo que ele se deitasse, eu já estava dormindo.
Ele tudo fazia por nós, seus filhos,
principalmente por mim, talvez por eu não ter tido mãe e por ser, talvez, o
mais parecido com ela.
Não havia nada que eu pedisse que
ele não conseguisse para mim. E ele nada me pedia, e justamente quando me
pediu, eu não o fiz.
ainda não tenho o título definido para o livro nem uma data "fechada", mas creio que ele será lançado no primeiro semestre de 2012
ResponderExcluirMuito bom! emocionante!
ResponderExcluireu acho que esse livro, que eu ora chamo de "pra deus dizer adeus", o melhor entre todos os que escrevi até agora.
ResponderExcluirele tem uma carga emocional, um drama, como o "Espelho Quebrado" (meu primeiro romance publicado), mas tem um ritmo de leitura mais intenso, uma linguagem mais leve e com mais personagens que se entrelaçam ao longo da história.
também procurei "inovar" na minha forma de narrar, não me prendendo a linearidade do tempo. o livro é todo contado em cima de lembranças de vários momentos a vida do personagem, cheio de idas e vindas.
Vai ser bem dramatico... Vai ficar bom com certeza
ResponderExcluirJosue Melo
te falo pelo msn/ e-mail o que achei dele...
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirOi, Lima..me comoveu tua história com teu pai. Muito linda mesmo! Mas só uma obervação: Como vc não fez nada por ele? Vc notou q foi a partir do encontro no quarto q ele voltou a viver? e apartir daí se renovou mesmo com a perda triste que teve? A gratidao dele por vc foi tanta q nunca te negou nada. Muitas vezes fazemos pelo outro e sequer notamos ou calculamos todo bem que fizemos. Acho que é o caso..rsrs Estais sendo muito desatencioso consigo próprio. Vc deu resgatou seu pai, deu a ele nada a mais nada a menos que a vida de volta. É mole ou quer mais? PRESTENÇÃO, MENINO!!
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirisso tudo é melhor explicado e explorado ao longo do texto.
ResponderExcluirpostei só um "aperitivo", para deixar o leitor com gosto de "quero mais".