A primeira lembrança que a menina tinha era a do dia em que
sua mãe fora abandonada pelo marido, seu pai. Ela chorava, maldizendo a tudo e
a todos pela maldição que fora jogada
em sua família, tantos anos antes, em todas as mulheres. Dizia a maldição que
nenhuma mulher daquela família seria feliz com homem algum, e assim vinha sendo
de geração em geração. Um dia a mulher se julgava a mais feliz do mundo, amava
e se sentia amada, e no seguinte sentia um vento frio bater em seu rosto, e
sabia que era a maldição vindo à tona, e o homem que lhe fazia tão feliz
desaparecia, a abandonando com uma criança pequena nos braços, ou a traía ou
tinha sua vida arrancada sem piedade por alguma fatalidade. Algumas mulheres
eram felizes, viviam suas vidas sem quaisquer preocupações com a maldição que
recaia sobre seus ombros, mas estas, afortunadas, não eram sequer lembradas
como pertencentes àquela família. O elo, o que unia as mulheres naquela família,
era a maldição.
A menina
lembrava-se do choro da mãe, de suas palavras injuriosas à Deus e ao Diabo, da
raiva em seus olhos e de sua indignação. Ela também chorava, com medo, abraçada
à irmã mais velha, que a consolava. Não entendeu, pois era apenas uma criança,
e mal tinha cinco anos, o que se passava, mas a palavra maldição ficou, desde aquele dia, para sempre gravada em sua
memória. Quando pegava no sono, escutava o eco da voz de sua mãe falando na
maldição e em sua irmã, mesmo também uma criança, pouco mais velha do que ela,
tentando explicar o que era aquilo. Quando ia a escola, que via as meninas de
sua sala não a chamando para brincar ou mesmo a evitando, ficava imaginando se
era por que era uma suja, por que
estava amaldiçoada.
Cresceu com
o estigma de uma amaldiçoada, sempre ouvindo as lamúrias de sua mãe, sempre
vendo a raiva e a inveja dela quando via um casal feliz e os amaldiçoava por
sua felicidade. Sempre a via rezar, lamentando-se por sua condição. Ouvia
histórias, contadas por ela, de sua avó, bisavó, tias e outras parentes
distantes, que sempre eram agraciadas, em dado momento de suas vidas, com a
infelicidade, em que eram lembradas pela maldição daquela família. Via a sua
irmã mais velha se tornar uma moça bela, que chamava a atenção de todos, sejam
homens, que a desejavam, sejam mulheres, que a invejavam. Sua irmã, mesmo
sabendo tão observada, não olhava, nunca, para ninguém, e sentia medo só de
pensar no dia em que olhasse para um alguém e se apaixonasse, pois saberia que,
quando isso acontecesse, seria o mais feliz e o mais triste de sua vida.
Viveu uma
vida tranquila, apesar de tudo, e pouco a pouco a ideia da maldição havia sido
esquecida. Não mais via sua mãe reclamar ou falar disso. Até na escola, já
moça, com seus treze anos, se aproximou de um grupo de meninas, e todas se tornaram
amigas inseparáveis. Passavam horas e horas, mesmo durante as aulas,
conversando sobre assuntos que meninas-moças dessa idade conversam. No horário
de intervalo entre as aulas, iam ao pátio da escola e lá ficavam jogando
conversa fora.
Um dia,
quando estava em casa, no quarto, viu quando sua irmã chegou, felicíssima, como
ela jamais a vira. Estava radiante, tanto que não conseguia falar o motivo de
tudo aquilo. Foi para o quarto e se jogou na cama, abraçando os travesseiros.
Nos olhos, um sorriso, um brilho diferente, da mais pura e elevada felicidade
humana: a paixão havia lhe arrebatado por inteiro.
Passou a
noite em claro, ouvindo as histórias de sua irmã, de como ele era lindo, de
como havia pego sua mão, das palavras que dissera, do sabor de seu beijo e do
calor de seu abraço. A irmã era feliz, e a contagiou com essa felicidade.
Somente a sua mãe não mostrava contentamento algum, e se mantinha calada.
Virou uma
mulher tendo em sua irmã um grande ídolo. Tinha uma inveja saudável dela, de
sua felicidade, ao ver tudo que ela alcançava: sua formatura, seu primeiro
emprego, quando foi promovida; seu noivado, todos os preparativos para o
casamento, todas as compras para o enxoval.
Sua irmã,
no dia do casamento, estava esplendorosa, e todas as mulheres da família
estiveram presentes. Não se sabia se os olhares delas era de inveja e
reprovação ou de felicidade e alívio. Foi com grande alívio que ouviram o
“sim”, dado pelo noivo, repleto de entusiasmo. Souberam que aquele homem iria
fazer daquela mulher, a mulher mais feliz do mundo. Aquele “sim” dos noivos,
foi, para a família, como se tivesse sido selado o fim da maldição. Maldição
algum poderia atrapalhar aquela felicidade.
Ninguém da
família falou mais em maldição, e as mulheres, todas, se preocuparam apenas em
viver suas vidas. Nem todas eram felizes em seus relacionamentos, óbvio, mas
atribuíam isso a motivos diversos, e viviam suas vidas como deveriam viver.
Algumas eram abandonadas, outras traídas, mas esses casos eram fatalidades,
coisas a que todas estavam sujeitas, eram coisas da vida.
Ela se
tornou uma linda mulher, mas de tão ocupada com estudos e trabalho, não dava
tempo para si, e não percebia os olhares que as pessoas lhe direcionavam. Saía
de casa muito cedo e só chegava tarde da noite, mas sempre ligava para a irmã,
para se sentir contagiada com a felicidade da outra.
Um dia,
quando saía do trabalho mais cedo, distraída como estava por conta de uma
conversa que tivera com uma amiga, esbarrou em um alguém e acabou derrubando os
livros que trazia nas mãos. Quando se abaixou para pegá-lo, o homem em quem
tinha esbarrado fez o mesmo, para ajudá-la. Os olhares dos dois se encontraram.
Ela jamais, em toda a sua vida, poderia imaginar que aquilo pudesse acontecer.
Pensava que aquele tipo de paixão arrebatadora, à primeira vista, numa
circunstância daquelas, só acontecia em contos de fadas e em cenas de cinema.
Mas ela estava ali, ele estava ali, eram pessoas reais, seus olhares se
encontraram e aquela paixão, súbita, fulminante, era real. Não falaram nada,
pois palavras não eram necessárias. Seus olhos diziam tudo.
Aquele foi
o dia mais feliz de sua vida. Chegou a casa extasiada e sua irmã veio direto do
trabalho para falar com ela, para sentir sua felicidade. As duas se abraçaram
longamente e passaram aquela noite juntas, conversando, sem conseguirem dormir.
Aquela
felicidade parecia não ter fim e aumentar mais e mais a cada novo dia, a cada
vez que falava com ele, a cada vez que o beijava e se aninhava em seus braços.
Ele a amava
de todo o seu coração, com toda a força de seu amor. Ela era tudo para ele.
Sua irmã
lhe deu a notícia de que seu casamento estava em crise e que provavelmente
iriam se separar. Na noite em que lhe contou isso, fazia frio e chovia muito.
Ela e sua irmã estavam de mãos dadas, trocando confidências uma com a outra.
Ela disse que o namorado estava dando certos indícios de que em breve iria
pedi-la em casamento. Ao falar isso, sentiu um vento frio tocar seu rosto e um
arrepio, que foi da nuca até o final da coluna, então ela se lembrou...
Ouvir
aquela notícia, da separação de sua irmã, foi como um balde de água fria em sua
felicidade, no sentido de sua vida. Um filme passou em sua cabeça numa fração
de segundo. Lembrou-se de sua infância e aquele dia, de sua primeira lembrança,
lhe veio à mente. Lembrou das lágrimas e lamentações da mãe e de outras
mulheres de sua família. Via o exemplo de suas familiares (e agora de sua
irmã), todas infelizes.
Ela tinha a
certeza de que a maldição era verdadeira, de que nada que pudesse fazer poderia
quebrá-la, de que por mais feliz que fosse, sempre haveria um momento em sua
vida, mais cedo ou mais tarde, em que a esta felicidade lhe seria roubada e ela
se veria sozinha e triste, completamente arrasada.
Ninguém, na
família, falava mais em maldição. Era como se todas as que sofreram tivessem
esquecido o que acarretara tal sofrimento, e só ela se lembrasse e sentisse o
peso da maldição. Era como se só ela pudesse ver com clareza o motivo das
infelicidades de cada mulher de sua família. Era como se só ela pudesse
entender as consequências de se carregar um estigma, de se ser uma amaldiçoada.
Naquela
noite ela não dormiu, e quando pegou no sono, quando o sol já estava para
nascer, teve pesadelos.
Acordou
sobressaltada com o seu telefone celular. Era seu namorado, que lhe ligava para
dizer que a amava e que precisava falar com ela, ainda naquela manhã, para lhe
dizer algo de muito especial. Ela já sabia, intuía, o que ele tinha para lhe
dizer, e sabia, também, que resposta teria que dar.
Ao ouvir a
recusa de seu pedido de casamento, ele quis saber um porquê, já que se amavam
tanto, já que eram tão felizes juntos, já que se podiam fazer ainda mais
felizes um ao outro. Como resposta, ela disse apenas que não podia ser feliz,
que a felicidade não lhe era permitida, e que o amava, e sempre o amaria, só
não podia, nem queria, ser feliz amanhã para, no dia seguinte, esquecer tudo e
ser mais infeliz ainda.
Por acreditar que havia
uma maldição que recaia em sua família, por acreditar que seria para sempre
infeliz, ela deixou a felicidade escapar por entre seus dedos, tudo por conta
de uma crendice.
nossa achei essa historia emocionante sem palavras pra definir
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