Mesmo depois de tanto tempo, lembro daquele dia como se fosse ontem, da cena que vi, que ficou gravada para sempre na minha memória, daquela pessoa que eu julgava a mais sólida fortaleza que ruía bem diante de meus olhos e mostrava-se tal como era: uma pessoa sensível, que apresentava, pela primeira vez em sua vida, um sinal de sofrimento, de dor. Nunca eu vira, até então, nada a abalar, nada entristecê-la, até que naquele fatídico momento, quando eu me virei em sua direção e vi, quase invisível a olhos insensíveis, algo que muitos dos que estavam a seu redor não perceberam, mas que eu com meus olhos de criança, com meus olhos atentos àquela a quem tanto amava e admirava, captaram: uma única, solitária e doída lágrima escapar de seus olhos e macular a sua face esquerda. Talvez nem ela mesma tenha dado por isso, tamanha a dor que sentia, tamanha a tristeza que a tomava de assalto, todo o seu ser, roubando toda a sua força, fazendo com que cada célula de seu corpo sentisse aquela sensação de frio cortante, da esperança que escapa, dos momentos de alegria, antes tão frescos em sua memória, parecerem lhe deixar, ficando apenas a tristeza, a dor da perda e a escuridão.
Mas ao vê-la ali, tão frágil, tão só, tão desamparada, como se aquela fortaleza que ela tinha sido até então ameaçasse desabar e mostrar-se humana, fizesse com que eu passasse a admirá-la e estima-la ainda mais. O amor e orgulho que sentia por aquela mulher, por minha mãe, aumentou, e eu soube, naquele momento, o sentimento que a tomava, então eu a compreendi, soube o significava ser Mãe.
Ela acabara receber, na sala de espera do hospital, onde meu irmão estava internado, a notícia de sua morte prematura, quando contava com apenas doze anos.
Naquela época, eu contava com apenas nove anos, e embora não compreendesse, ainda, tudo que acontecia ao meu redor, com as pessoas com quem tinha contato, sabia que havia algo de sério quando meu único irmão foi internado, devido uma doença que eu nunca soube na verdade qual era, mas que sabia que era grave, pois durante os dias em que ele esteve no hospital, eu muito raramente via minha mãe. Ela passava o dia todo fora, trabalhando pela manhã e à tarde, indo visitar Jorge, meu irmão, no seu horário de almoço, e só voltava pra casa à noite, quando, na maioria das vezes, eu já estava dormindo. Uma ou duas vezes eu a ouvi entrar sorrateiramente em meu quarto, tomando cuidado para não fazer barulho, pisando muito leve no chão, para evitar me acordar, e chegar perto de minha cama, de inclinar sobre mim, me cobrir, beijar a minha testa, desejar-me uma boa noite, afagar meus cabelos e se retirar. Também a ouvi certa noite, depois de fechar a porta de meu quarto, conversar com minha tia, com quem eu ficava dia e noite, comentar que estava exausta, que estava a ponto de explodir com aquilo tudo, que não aguentava mais aquela angustia, mas que estava confiante com as notícias que o médico lhe dera naquela noite, que Jorge tivera uma melhora e poderia, logo, logo, voltar para casa, tão logo seu quadro se estabilizasse.
Eu, lógico, naquela idade, não entendia patavina do que elas diziam, mas notava, pelo tom de suas vozes, falando aos sussurros, como se só em tocar naquele assunto significasse algo que despertava seus mais profundos e dolorosos temores, que algo de grave estava acontecendo.
Ao fim de quase duas semanas, estávamos todos no hospital, inclusive eu, pois minha mãe não tinha com quem me deixar e teve que me levar.
Lembro-me muito bem daquela tarde quando esperávamos, tensos, as notícias que o médico deveria trazer. Sabia-se que eram graves, pois sequer deixaram minha mãe ou qualquer outro parente ver meu irmão naquele dia, e todos esperávamos, impacientes, pelo homem que vi, extremamente impessoal em toda a face, mas com olhos impacientes, que percebi, não se fixavam em ninguém, que se desviavam, principalmente de minha mãe. Demoraram-se apenas alguns segundos, eu sei, mas naquele momento, naquele instante, estes passaram tão lento quanto uma eternidade, para ele falar as primeiras palavras, que mesmo antes de serem ditos, todos que estavam ali já sabiam qual eram.
- Jorge, seu filho, faleceu... Nós fizemos tudo para salvá-lo... – disse o médico. Ele falou muitas outras palavras, mas eu não pude entender nada além daquelas palavras, pois aquela sala, que antes estava tão silenciosa, logo se encheu de sons tristes, de gritos desesperançados, de queixas, de dores. E ali estava ela, minha mãe, parada, séria, sem dizer nada, como se não escutasse ou se fosse incapaz de compreender aquelas palavras ditas pelo médico que tentara salvar meu irmão.
Após um curto tempo, percebi um leve tremor em sua face, um breve e quase imperceptível movimento no queixo, depois na boca e na bochecha. Pouco depois começou a brotar uma lágrima, que rolou por sua face. Era uma só, a princípio, mas logo outras se juntaram e ela começou a chorar copiosamente. As lágrimas que rolavam por sua face eram doídas, pois vinham do fundo de seu coração. Suas pernas fraquejaram e ela teve que ser amparada por um tio meu, que por sorte estava a seu lado e foi rápido o suficiente para segura-la antes de ela desabar no chão.
Ali estava aquela mulher a quem eu tanto amava e admirava, a quem eu julgava a mais forte do universo, a mulher sempre sorridente, feliz, que parecia ter sido engolida por aquela outra, tão triste, desesperada devido a morte de seu filho, de seu primeiro filho, a quem ela tinha carregado durante nove meses em seu corpo, a quem ela alimentara, a quem ela educara, que há poucos minutos estava vivo, mas que agora...
Naquele momento, ao ver minha mãe ali, tão frágil, tão triste, eu olhei para a sala onde nos encontrávamos. Ela era pobre em termos de decoração: possuía apenas dois grandes estofados e algumas cadeiras, uma mesa de centro, onde havia algumas revistas, e uma cruz numa das paredes. Eu a contemplei por alguns segundos e perguntei a Ele "por quê?", com minha ingenuidade de criança em busca de respostas por aquilo que me eram incompreensíveis. Voltei a mim quando ouvi que minha mãe voltava a si e falava palavras desconexas, pedindo para ver o filho morto, dizendo que aquilo que ouvira não podia ser verdade. Ao vê-la daquele jeito, eu fui tomado por uma intensa tristeza e senti um frio no estômago e no coração, senti-me sufocado, faltava-me ar e senti as lágrimas brotando em meus olhos e um soluço longo, triste e doloroso me subir pela garganta. Chorei, e muito, naquele momento. Acredito até que aquela foi a primeira vez em que senti tamanha tristeza em minha vida, tamanha dor me tomar o peito, pela perda de meu irmão, mas, principalmente, por ver a dor que afligia a minha mãe.
Caro Lima, li seu texto e achei muito bom, você trabalha bem com as palavras. Torço para que seu livro seja lançado sim e que seja um sucesso.
ResponderExcluirForte abraço
Paulo Sutto