domingo, 27 de abril de 2014

O homem e o mar

Ele se abaixou lentamente, pois os longos anos que vivera já lhe pesavam sobre os ombros e muita da flexibilidade de tivera outrora já não mais existia. Apanhou um punhado de areia e deixou que ela escorresse lentamente por entre seus dedos. Fechou os olhos e sentia grão por grão lhe fugir, escapar e mergulhar de volta ao chão de onde foram retirados. Era uma areia fina, seca, mas que fora banhada na noite anterior quando a maré encheu.
            Mesmo com os olhos ainda fechados, o homem podia ver tudo que acontecia ao seu redor. Ouvia as ondas quebrarem perto, a poucos metros de onde estava, com as pessoas deixando que o mar, com suas mãos delicadas, lhe acariciasse seus pés; ouvia os casais conversando, ao longe, e suas vozes sussurradas trazidas pelo vento; ouvia os risos das crianças, brincando entretidas na construção de seus gigantescos e frágeis castelos de areia ou rindo, assustadas, quando o mar tentava agarra-lhes os diminutos pezinhos. Ouvia e via com clareza a tudo isso e sorria por dentro. Abriu lentamente os olhos e deixou que a claridade do sol lhe ferisse momentaneamente e lhe deixasse cego por um curto-longo instante. Olhou para a mão, onde apenas restavam uns poucos grãos de areia que ali se mantinham agarrados, com medo da queda em direção ao chão. Ele trouxe a mão até o nariz, para sentir o cheiro da terra e depois a passou no seu rosto seco, onde o tempo havia sulcado profundas rugas. Despiu-se da camisa de tecido áspero que lhe sufocava e das sandálias que incomodavam e feriam seus pés, sentindo-se, agora, livre. Respirou fundo duas ou três vezes, deixando que o cheiro do mar entrasse por suas narinas, invadisse seus pulmões e percorresse seu corpo. Ouvia o barulho do mar vivo, de suas ondas indo e vindo, das pessoas que brincavam em suas bordas ou mergulhadas em seu seio.
Ele deu dois ou três passos pesados, inseguros, pois suas pernas já não tinham mais a leveza e segurança de tantos anos atrás. Demorou uma eternidade até chegar onde a areia estava úmida e viu que ainda estava longe de onde o mar tocava e se fundia a terra, de onde deixava rastros da espuma de sua respiração. Continuou em seu trajeto lento e vagaroso, mas determinado tal qual um maratonista. A cada passo que dava sentia mais firmeza nas pernas a ponto de estar quase correndo e quando chegou bem perto do ponto até onde os dedos do mar alcançavam, sentiu medo, tal qual uma criança ao se deparar pela primeira vez com aquele gigante, e parou. Seu coração batia acelerado e ele fechou novamente os olhos e se deixou guiar pelo som do mar a lhe chamar com sua voz rouca. Sentiu quando o primeiro eco de onda lhe roçou nos pés. Foi um toque frio como gelo que lhe percorreu todo o corpo. Abriu repentinamente os olhos e o mar, ao ver isso, tocou-lhe novamente, dessa vez com mais calor, lhe chamando. O homem, ao sentir tão caloroso toque, foi, dando um passo depois do outro, até que estava submerso da cintura para baixo. Com sua mão, sentia a mão do mar a lhe chamar, a lhe seduzir, e ele deu mais alguns passos, até que a metade do seu peito já estava mergulhada, sendo embalada pelo mar. Parado, ele abriu os braços e sentiu o silêncio lhe invadir por inteiro. Inclinou-se levemente para mergulhar e ficou inteiramente submerso por alguns segundos, como que em completo desprendimento do mundo que o cercava. Riu ao sentir a paz que lhe tomava naquele instante. Só emergiu de volta a superfície quando o ar começou a lhe faltar nos pulmões. E tal não foi o sentimento de renovação ao, com o corpo molhado, deixar que o ar renovado percorresse seu corpo. Deu mais vários mergulhos e em cada vez que emergia se sentia mais e mais renovado, e quando se sentiu novamente pleno, despediu-se do mar, soltando um beijo quando submerso.
Quando saiu do mar, não era mais o mesmo homem que havia nele entrado. Sua pele não estava mais seca e enrugada, mas firme, com o viço da juventude a nela brilhar. Caminhava lentamente, deixando que a água escorresse por seu corpo, despedindo-se lentamente. Quando estava se libertando dos braços do mar, ainda sentiu a mão dele a lhe chamar novamente para um último mergulho. Ele se virou e sorriu, dizendo por dentro que não agora, mas que logo voltaria para mergulhar, para se deixar novamente rejuvenescer e tornar-se seu amante quando em seus braços.

A cama de nossos pais

Um dos maiores segredos do Universo, um dos maiores enigmas que os homens tem se debruçado, sobre o qual tantos sábios, filósofos e cientistas estudaram, está em descobrir por que a cama de nossos pais é sempre a melhor cama do mundo, o lugar mais seguro, quentinho e aconchegante do Universo. A cama de nossos pais é uma verdadeira ilha de calor e paz em meio ao oceano de águas profundas e geladas onde fomos jogados.
            Desde que o mundo é Mundo e foi criado o quarto dos filhos, para que os pais possam ter uma noite de sono sossegada em seus quartos, é que as pobres crianças sentem-se verdadeiras órfãs, pois muitas vezes existe uma parede quase intransponível que os separa da cama de seus pais, e desde esses imemoriais tempos que estas crianças dão seu jeitinho para atravessar a aparente inexpugnável muralha que os separa de seu objetivo. E a maneira encontrada é simples: bater a porta do quarto, tendo sempre um coberto enrolado ao corpo e um travesseiro debaixo do braço, alegando estar com medo do escuro, dizendo que tem um bicho-papão debaixo da cama, quando, na verdade, o que há, no máximo, é um playmobil esquecido na última brincadeira ou aquela sandália ou sapato que a gente nunca encontra na hora que mais precisa. E então vem nossa mãe, é normalmente ela quem abre a porta, e olha para nós, da forma como só as mães nos olham.
            - O que foi, menino? – pergunta ela.
            Então nós desenrolamos a nossa história, a nossa desculpa, quando, na verdade, só o que queremos é um pouco do espaço mágico daquela cama.
            Quando nossa mãe está, finalmente, se convencendo da veracidade da nossa história do bicho-papão e do escuro que quer nos tragar para sua profundeza, ouvimos a voz de nosso pai, que acorda de repente e quer saber o motivo de estarmos ali, parados à porta do quarto. Ele nos manda voltar para nosso próprio quarto, para dormir em nossa própria cama e, já com olhos chorosos, damos o primeiro passo para trás, eis que nossa mãe, sempre ela, nos salva e nos dá passagem, de forma que nos jogamos sobre sua cama e muitas vezes antes mesmo dela se deitar, já estamos dormindo um sono tão pesado que nem mesmo um carnaval fora de época, se passasse em frente a nossa casa, seria capaz de nos acordar. E ficamos ali, naquela cama tão grande, entre nosso pai e nossa mãe, impedindo que eles se abracem, desejando apenas o abraço de ambos.
            Muitos são os que se debruçam sobre essa complexa questão primordial para a existência de qualquer ser humano. Os matemáticos, por exemplo, alegam que o ângulo do colchão de nossos pais com relação ao travesseiro faz com que aquele seja um local tão propício para um sono agradável; os físicos, por seu lado, falam de calor; os poetas tentam, em vão, com seus versos explicar a relação existente entre os filhos e a cama de seus pais; os psicólogos chegaram a conclusão de que, nesse caso, nem Freud explica;os biólogos falam que esse é um de nossos instintos primitivos; os geógrafos, que esse é nosso norte; os historiadores, bem, esses não chegaram a um consenso, ainda. Enfim, todos falam, falam e falam, mas nenhum chegou a questão primordial.
            Eu, por meu lado, acredito que essa é uma questão por demais complexa, que por mais que nos debrucemos sobre ela jamais chegaremos a um consenso, que é uma questão puramente afetiva.
            E de tanto falar nisso, enquanto escrevo esse texto, ouvi um barulho vindo debaixo de minha cama. Olho para o quarto escuro e começo a tremer de medo e resolvo sair de meu quarto, e ir para o de meus pais. Lá, quando eu bater a porta, provavelmente virá minha mãe abri-la e me olhará com uma cara estranha, como se dissesse “o que que tu ‘tá fazendo aqui, menino?” e eu, enrolado a meu lençol, tendo o travesseiro debaixo do braço, olharia para ela como se respondesse que o que fazia ali era óbvio, que vinha dormir na sua cama, onde não me deitava há tempos. Ela me lançaria um olhar indiferente, daria de ombros e me daria passagem. Quando me deitasse na cama, antes de pegar no sono, ainda escutaria meu pai reclamar, dizendo:
            - Esse menino aqui de novo? Você já está grande demais, rapaz. Vai dormir na sua cama!
            Mas antes que ele terminasse de falar isso, eu, do alto dos meus vinte e poucos anos, já estaria dormindo.

domingo, 20 de abril de 2014

O som do mundo

Nunca captara os sons do mundo com os ouvidos, nunca escutara aquilo a que chamavam de sussurro do vento ou se deleitara com o canto dos pássaros ao saldar o sol que nascia a cada manhã, no entanto, nunca se sentira triste por isso, pois embora não escutasse, podia ouvir tudo que o mundo tinha a lhe dizer com os outros sentidos.
A cada manhã, antes de o sol nascer, abria a janela de seu quarto e ficava a observar o suave e lento despertar dos pássaros, e se deleitava quando os via, aquecidos pelos primeiros raios do sol, estufar o pequeno peito e emitir um clamor de felicidade ao novo dia que nascia. Se queria ouvir o vento, bastava fechar os olhos e deixar que ele lhe acariciasse a face com seus dedos leves. Se sua necessidade era ouvir o que as pessoas lhe dizia, bastava lhe olhar no fundo dos olhos e ler seus lábios, que captava a verdadeira essência de suas palavras.
            Com a ausência da audição, seus outros sentidos tornaram-se tão aguçados que conseguia captar o mundo em seus sons com muito mais sensibilidade e profundidade do que aqueles que eram dotados de todos os cinco sentidos o faziam. Conseguia sentir o gosto das palavras, o toque dos sons, o cheiro daquilo que era dito e ver o que as pessoas realmente queriam lhe dizer.
            Desejava, sim, todos os dias, poder ter os ouvidos para ouvir, para captar todas aquelas sons, para deixar que as vozes do mundo lhe invadissem e lhe tomassem por inteiro, e um dia, enquanto dormia, teve um sonho estranho, e neste sonho um alguém lhe tocou os ouvidos e lhe sussurrou palavras que ele pôde escutar. Abriu subitamente os olhos, tendo sido acordado por um som de ecos de passos de uma pessoa no corredor. Jogou longe o cobertor e pulou da cama. Balançava a cabeça de um lado para o outro, ouvindo todos aqueles sons de sua casa, das pessoas que acordavam, das casas vizinhas e do mundo que despertava. Abriu a janela de seu quarto e olhou para fora, para ver o pássaro a despertar. Viu-o como todos os dias, mas não ouvir seu canto, tal como todos os dias ouvia, mesmo sendo surdo, pois os barulhos das pessoas despertando, das casas em polvorosa, dos carros na rua, impediam-no de ouvir com clareza.
            Ao sair do quarto, quando se sentou à mesa para fazer a primeira refeição da manhã junto com seus familiares, conseguiu ouvir tudo o que eles diziam, mas nenhum, em nenhum momento, lhe dirigiu a palavra, e esse foi o pior silêncio ao qual já havia sido submetido em sua vida.
            Na rua, não conseguiu ouvir qualquer som trazido pelo vento, nada de sussurros ou carícias, apenas lhe chegavam aos ouvidos uma poção de inúmeros ruídos e barulhos, todos muito altos. Pessoas falavam alto e ninguém se entendia; nas ruas e avenidas os carros passavam velozes, cantando pneu, buzinando. Eram tantos barulhos que ele se sentiu desnorteado. Agachou-se e tapou os ouvidos com ambas as mãos, para se proteger de todo aquele turbilhão que lhe sufocava. Passou o dia inteiro tentando escutar o que o mundo lhe dizia, mas os sons dos barulhos que lhe chegavam aos ouvidos abafavam e sobrepujavam aqueles que ele desejava ouvir.
            Voltou para casa num completo estado de surdez, como jamais estivera.
            À noite chorou duras, frias e grossas lágrimas e dormiu com os olhos úmidos. Durante o sonho, o mesmo homem da noite anterior lhe veio e sorriu e lhe sussurrou palavras ao ouvido.
            Ao acordar, ele, como sempre fazia, abriu a janela e olhou para fora, viu o passarinho despertar, estufar o peito e cantar, sentiu o sussurrar do vento e sorriu por poder, mesmo desprovido da audição, ouvir os verdadeiros sons do mundo.

sexta-feira, 18 de abril de 2014

Luto no Realismo Fantástico


Hoje, nós, amantes de literatura, estamos de luto. Morreu, ontem, o homem que foi um dos maiores gênios da literatura mundial no último século, quiçá o mais reconhecido, o que mais incorporou e transpirou em sua obra do espírito, magia e fantasia Latino Americana: Gabriel Garcia Márquez. Alguns, talvez, não entendam este sentimento de luto que nos toma, afinal de contas foi “apenas um escritor”, “só escreveu uns livros...” Não! Gabo, como nós nos damos o direito de chama-lo, não foi apenas um escritor, não escreveu apenas uns livros, ele simplesmente nos presentou com mundos que nos convidou a habitar, ele dotou de um brilho e fantasia as nossas vidas, muitas vezes insossas, através de sua histórias e personagens com os quais nos identificamos desde a primeira palavra. É um sentimento de perda que nos toma que é impossível mensurar e mesmo entender.
            Morre um gênio, um fantasista que nos fez sonhar, que nos deu a mão, como que nos convidando, dizendo: “Vem. Deixa eu te conduzir por este caminho labiríntico desta história!”, e nós, conquistados e cativados por seu sorriso aberto, nos deixamos ir, embalados por suas melífluas palavras. Morreu aquele que nos conduziu de mãos dadas pelas ruas de Macondo, que nos apresentou a tantos Josés, Arcádios, Aurelianos, Úrsulas, Amarantas, Remédios, que nos fez sofrer com a espera, desilusões e amores e dores envolvendo as personagens de Juvenal Urbino, Fermina Daza e Florentino Ariza, foi ele o criador, o pai, o que nos presentou com tantos lugares reais-imaginários e personagens que somos nós em cada uma de suas histórias.
            Deixou este mundo, talvez, de forma tão breve, foi-se o dos últimos e maiores fantasiadores da linguagem, da literatura, deixando, em nós, seus amantes, seguidores e profundos admiradores, um sentimento de luto, deixa-nos como órfãos de suas histórias e personagens. Deixa um vazio em nosso peito, fazendo com que perguntemos “e agora, quem tomará seu lugar?”. Ninguém! Ninguém tomará o seu lugar, pois ele, não lhe foi dado, entregue numa bandeja, mas conquistado, palavra a palavra, personagem a personagem.
            No mundo, hoje, já não mais vive o ganhador do Nobel de Literatura de 1982, o escritor de Cem Anos de Solidão, Amor nos Tempos do Cólera, Memórias de Minhas Putas Tristes, Do Amor e de Outros Demônios, Crônica de uma Morte Anunciada, Outono do Patriarca, entre tantos e tantos e tantos outros livros, mas passa a habitar, permanecendo eternamente vivo, nas palavras de seus livros, nos fragmentos de sua alma que foram impressos em cada um de seus personagens.
            Sentimo-nos órfãos, sim, de luto, sim, mas jamais sozinhos, jamais com um pesado amargor de uma solidão, pois estaremos para sempre arrodeados/ acompanhados por seus personagens para onde quer que olhemos nessa extraordinária Macondo na qual nos foi permitido o privilégio da entrada, pelas ruas da qual fomos conduzidos, guiados, segurando na mão de um gentil homem de fartos bigodes que nos deixou quando estava no alto de seus 87 anos de uma curta-longa vida.
            Adeus Gabriel Garcia Márquez, Gabriel, Gabo, Gabito. Sentiremos, sim, a sua falta, mas sempre que este sentimento apertar podemos lhe invocar, podemos sentir a sua presença com um simples abrir de um livro e virar suas páginas, quando ouvimos a história sendo narrada por sua voz.

domingo, 13 de abril de 2014

Rastros daquele que foi um dia...

A última vez em que eu o vi, ele era jovem. Era desses jovens impetuosos, desses que podia ser o que quisesse, que tinha a vida toda pela frente e o mundo nas mãos. Nossos caminhos se separaram, mas eu sempre ficava sabendo de seus feitos. Ele havia sido músico, feito sucesso, se envolvido com mil e uma mulheres, depois largou todas elas para viver a sós consigo mesmo. Estava “dando um tempo”, como havia sido noticiado. O “tempo” que havia dado foi tão longo, mesmo, que todos se esqueceram dele, e quando voltou “à vida real”, ninguém mais queria saber de suas músicas e mulher alguma lhe dirigia um único sorriso. Caiu em depressão e se entregou. Passou a usar drogas, foi internado, disse ter se recuperado, voltou a se drogar, depois, pela dor que estava causando aos que o amavam, resolveu dar uma nova chance à vida. Passou a ter uma “vida normal” e entrou para o serviço público. Levava uma vida de rotinas e todos os seus dias eram sempre iguais, com as mesmas obrigações, atendendo as mesmas pessoas, fazendo as mesmas coisas.
            Eu, de longe, ficava pensando em como ele podia aguentar tudo aquilo, sendo ele quem era. Acabou se envolvendo com uma mulher comum e tiveram um casamento comum e seguindo a comum vida dos casais e suas mil e uma rotinas. Já não tinha mais a barba de outrora, seus cabelos eram cortados bem curtos e as tatuagens e cicatrizes estavam escondidas por baixo das roupas de grife que agora usava. Nunca sorria e suas palavras eram como que mecanizadas, sempre as esperadas, as triviais e banais palavras do dia-a-dia. Não mais vivia cercado por tantas pessoas, e, ao invés disso, parecia mesmo evitar o contato humano, salvo aquele a que era obrigado pela sua rotina. Havia, como todos os iguais a ele, se separado, tentado um novo relacionado, se casado novamente para tornar a se separar em seguida. Era mais um “que não tinha dado certo no amor”, como costumava dizer, e agora levava uma vida solitária de gostos e hábitos simples, como proclamava para todo o mundo ouvir.
            De tanto não ser ele mesmo, acabou se confundindo e sempre como todos: apenas mais um na multidão. Fiquei um longo tempo sem saber o que ele fazia da vida e o que a vida fazia dele. Talvez tenha se fundido de tal forma às rotinas e obrigações que tenha se tornado parte essencial delas. Tentei rastrea-lo e seguir seus passos, descobrir onde tinha ido e o que tinha sido feito dele, até que o reencontrei, certa vez, parado. Ele tinha os olhos fixos nos meus, como que me prendendo. Aqueles olhos que eu via não era os do homem igual, do homem das rotinas, mas sim os do jovem que eu não via há tantos anos. Ele não falou uma única palavra, e apenas sorriu, pois percebeu o meu espanto ao vê-lo ali, tão perto. Eu não conseguia falar uma única palavra, pois todas estavam presas na minha garganta. Não sabia o que fazer nem como agir. Não sabia se queria que ele voltasse a sumir, a ser só mais um como havia sido durante tantos anos, ou se ficasse onde estava, que voltasse a ser que ele era, quem sempre tinha sido e que nunca deveria ter deixado de ser.
            Eu devolvi seu olhar e nos seus olhos eu vi a sua alma pulsando de vida. Levantei a mão para tocar sua face e só então me dei conta de que ele era um reflexo que eu via através da fina lâmina de vidro do espelho. Então, ao me dar conta de quem eu era e de quem havia me tornado, chorei, pois agora já era tarde demais e que nada poderia ser feito para fazer o tempo voltar atrás para fazer tudo diferente, de ser quem eu deveria ter sido...

domingo, 6 de abril de 2014

Aniversário de livraria - e já se vão nove anos...


Há exatos nove anos eu, ao sair da universidade, por volta das 20h, quando já na parada, esperando o famigerado 31, senti meu celular vibrar. No visor apareceu um número que eu não conhecia, e eu atendi. Fazia muito barulho e eu demorei a entender o que a pessoa do outro lado da linha dizia, depois, quando entendi, pedi para ela repetir. Ela se apresentou, dizendo seu nome e perguntando se eu poderia comparecer, no dia seguinte, na Livraria Bueno, no Natal Shopping, para fazer uma entrevista referente ao processo seletivo da Livraria Siciliano, que iria abrir na cidade. Nem acreditei no que ouvi. Sempre quis trabalhar em uma livraria, e vivia deixando currículos em todas as da cidade, mas calhou de eu, pela minha inexperiência profissional, pelo meu currículo vitae ser tão pobre, nunca ser chamado sequer para uma mísera entrevista. Sentia-me capaz de trabalhar, já era possuidor, na época, de um “espírito livreiro”, e mais do que isso, amava tudo que concerne a literatura. No entanto, após nunca ver uma fresta numa janela (imagine uma porta!) ser aberta para mim, estava cansado. Havia parado de distribuir a torto e a direito currículos, mas fiz uma última tentativa, devido a insistência de uma amiga, que me recomendou fazer um cadastro mandando meu currículo para o site da livraria, pois, ela ouvira, estavam selecionando por lá. Meio desacreditado, pois nunca levei muita fé nessa “seleção por internet”, fiz o cadastro, coloquei o currículo no site, como uma espécie de “última cartada” minha para tentar trabalhar numa livraria. E eis que naquela noite de 6 de abril de 2005, eu recebia o telefonema para marcar a entrevista.
 
            Eu sempre fui “agoniado”, como diz minha mãe, usando como argumento o fato de eu ter chegado mais cedo, de oito meses, e naquele dia marcado para a entrevista, eu me superei. Minhas expectativas eram tantas que eu cheguei com duas horas de antecedência à hora marcada. Na noite anterior, expectante e ansioso como estava, mal dormi, mas estava sorrindo, apesar do nervosismo e do olhar de cansaço. Cheguei ao local marcado para a entrevista, tão meu conhecido, pois frequentava a livraria, muito mais para estar entre os livros do que para compra-los, pois não tinha muito dinheiro suficiente, já que era um mero bolsista na universidade, e como tal, sabe como é: sempre sobra mês no fim do salário... me apresentei e responsável pela loja (e entrevista) se espantou por eu ter chegado tão cedo. Disse ela que a entrevista seria só dali a duas horas! “Tudo bem”, disse eu, “irei ficar ali naquele cantinho, entre os livros, lendo. Posso?”. “Pode, sim. Óbvio”, disse ela, sorrindo. Fiquei ali, naquele cantinho, então, lendo, entretido entre os personagens (lia, naquele dia, “Quando Nietzsche chorou”, que me tinha sido emprestado por um amigo), muito embora a leitura não fluísse tanto, dado o meu estado de espírito, minha agitação interior. E antes da hora marcada para a entrevista, quando finalmente a leitura começava a fluir, alguém me tocou no braço. “Arlindo?”. “Sim. Sou eu”. “Eu sou a Rose. Vamos lá em cima para a entrevista”. Eu então a segui, nos sentamos e começou a entrevista com perguntas de praxe, e quando chegou a minha tão temida “experiência profissional”, pensei “me ferrei”, mas respirei fundo e a fiz ver que, mesmo com a minha “inexperiência profissional”, tinha algo muito valioso a oferecer: paixão pelos livros e uma boa bagagem de conhecimento literário. Ela anotou alguma coisa na minha ficha, tirando por uns instantes os olhos de mim, depois fez outras perguntas comuns a uma entrevista de emprego, e quando chegou a hora, pediu para eu preencher uma ficha, estendeu a mão, dando-me um insosso aperto, e disse que entraria em contato. Esse “entraria em contato” me assustava, pois nas entrevistas que eu havia feito anteriormente, em outros cantos, todos “entrariam em contato” e eu estava até aquele dia esperando um telefonema. Mas tudo bem. Paciência. As coisas funcionavam daquele jeito. Preenchi a ficha e entreguei na saída a uma pessoa, com expectativas, sim, mas um tanto quanto desanimado, pois a minha não experiência na área de vendas pesava contra mim.
 
            Dois dias depois da entrevista, quando saia de casa num início de tarde, recebia outro telefonema, do mesmo número que havia me ligado para marcar a entrevista. Respirei fundo duas ou três vezes antes de atender. Era uma pessoa, a mesma que havia me ligado da outra vezes (eu reconheci sua voz) perguntando se eu poderia comparecer naquela tarde, às 17h, na Livraria Bueno para participar de uma nova fase no processo de seleção. Eram 15h, mais ou menos, e eu disse, sim, óbvio. Desci imediatamente do ônibus, peguei um outro, voltando para casa a fim de melhor me aprontar, vestir uma roupa mais apresentável para tal ocasião, fazer a barba e ir para essa segunda fase do processo seletivo. Eu nunca havia passado de uma primeira fase de seleção de emprego, e estava, já, com a cabeça a mil, pensando no que poderiam exigir e saber de mim naquele dia.
 
            Chegando à livraria naquela tarde, mais cedo, mais não com tanta antecedência quanto na vez anterior, me apresentei e comecei a perambular por entre as estantes, pegando, vez por outra, um livro numa mesa, retirando um outro da estante, folheando-os. Vi quando algumas pessoas começaram a chegar e, como estava perto, ouvi que também haviam sido chamados para o processo de seleção da Siciliano. “são esses meus concorrentes de vaga”, pensei, analisando cada um que chegava. E quando chegou a hora marcada, que tive o nome chamado, junto com alguns outros tantos nomes, me dirigi ao local indicado para fazer uma nova entrevista, dessa vez com uma outra pessoa além da Rose. Novamente perguntas de praxe numa entrevista e novamente frisei a minha não-experiência profissional, mas meu conhecimento literário e paixão pelos livros, dizendo “não tenho isso, é bem verdade, MAS tenho muito mais a oferecer”. Termina a entrevista, somente o mesmo “entraremos em contato”, um aperto de tão e um “até logo”. Voltei para casa sem saber o que pensar a respeito daquela segunda entrevista. Não sabia se tinha ido bem ou não, ou se seria descartado ou chamado para uma nova fase da seleção.
 
            Passaram-se mais dois ou três dias, e nada de meu telefone tocar. Eu mal saía de perto dele, com medo de, ao sair, ele tocar e ser da livraria e eu não poder atender nem retornar a ligação. E quando já estava começando a me deixar abater pelo desânimo, pois daquela vez chegara tão perto, eis que o benedito toca! Era da livraria, convidando-me a comparecer no final da manhã do dia seguinte para mais uma fase da seleção. Sorri por dentro e disse que estaria lá na hora marcada, sim.
 
            Cheguei, como sempre, mais cedo, e fiquei perambulando por entre as estantes. Já era, naquela altura, conhecido na livraria como “o que chegava cedo, sempre antes de todos”. Fui reconhecendo uns rostos entre os que estiveram comigo há alguns dias, participando das entrevistas. Quando chegou a hora, que disseram do que se tratava aquela fase da seleção, minhas pernas tremeram: faríamos uma dinâmica! Eu procurei ficar mais escondido possível, deixando outros irem na minha frente, para eu ver como eles faziam, para poder “copia-los”. Quando fui chamado, que dei um passo a frente, minhas pernas mal me sustentavam. Na hora em que tive que “simular um atendimento”, sei que fui PÉSSIMO, e voltei ao meu lugar completamente desolado, triste, sabendo que tinha chegado tão perto, e naquela dinâmica havia jogado tudo pro ar. Fiquei por ali, vendo as atuações dos outros, e quando tudo já tinha finalizado, fui chamado novamente. Rose pedia que eu fizesse novamente a dinâmica, pois não havia me saído muito bem na anterior (que eufemismo da parte dela – falar que eu não havia me saído “tão bem” era uma gentileza, um baita dum elogio). Levantei-me, atuei novamente, e dessa vez me sai um pouco melhor, mas mesmo assim, ainda péssimo. Depois Rose e o Josinaldo, que era quem conduzia a dinâmica, se reuniram e deixaram a nós, selecionáveis, num canto, conversando. Um a um, fomos sendo chamados para uma breve entrevista. Uns foram saindo tristes, outros com sorriso de orelha a orelha. Eu, dado o meu péssimo desempenho na dinâmica, estaria entre os que iriam sair tristes, eu tinha plena convicção disso. Quando meu nome foi chamado, que me vi frente a frente, novamente, com Rose, não conseguia lhe olhar nos olhos, pois sabia que a tinha decepcionado. Ela me falou de meu fraco desempenho na dinâmica, e que por isso não havia sido selecionado para as vendas, mas que pelo meu “vasto conhecimento literário” (estas foram palavras dela) fora deslocado para o estoque da loja, onde teria contato mais direto com os livros que chegavam, que estaria mais perto dela, etc. Daquele dia, do fatídico 13 de abril de 2005, pra cá, foi tudo tão rápido!
 
            Participei, ainda, de um treinamento, onde eu era visivelmente o mais empolgado, o que mais levantava a mão fazendo mil e uma perguntas, muitas das quais tão óbvias. Fui o primeiro a começar realmente a trabalhar, quando a loja ainda estava nas últimas fases da construção, que eu tinha que receber algumas mercadorias e caixas de livros que vinham chegando a cada dia.
 
            Trabalhei empolgado, com extremo zelo, naqueles dias que antecederam a abertura da loja. Tive, sim, um pequeno desentendimento, tendo feito algo “fora do padrão” que eles falavam, e por isso me retirei por alguns instantes, ficando num canto, sozinho, respirando fundo, até voltar as atividades. E tudo isso para deixar a livraria perfeita para o dia 27 de abril, data em que as portas seriam abertas.
 
            No dia 27 de abril de 2005, tínhamos que chegar mais cedo à livraria, por ocasião de uma breve confraternização. Tudo transcorreu tranquilamente, foi feito um discurso de praxe nessas ocasiões, e quando o shopping abriu, que as portas da livraria foram abertas, que os clientes começaram a entrar, que vi o primeiro se dirigir a mim, minhas pernas tremeram. Respirei fundo duas ou três vezes, dei bom dia, procurei ser simpático, exatamente como fora falado para eu fazer no treinamento, procurando seguir o passo a passo do “manual”, entreguei o livro ao cliente e o acompanhei até o caixa, e tal não foi a minha surpresa ao receber a notícia de que tinha sido eu (EU!) o responsável pela venda do primeiro livro da livraria Siciliano.
 
            Muita coisa aconteceu depois desse primeiro livro. Fui contratado para ser estoquista, sim, mas sempre que podia, dava um jeito de “escapar” e corria para ficar no salão de vendas, tanto que ao final de cada mês, quando eram passados os relatórios de vendas, eu estava à frente de muitos vendedores. Eu queria tanto, mas tanto, mas tanto ir para as vendas, onde me sentia mais à vontade, que mal passados dois meses de loja aberta, já fui chamado por Rose para uma breve reunião e receber a notícia de que tinha sido promovido! Fiquei feliz demais ao ouvir tal notícia, tanto que, em minha empolgação, corria de um lado para outro, atendendo mais clientes, indicando leituras, falando sobre os livros, mais do que todos os outros vendedores juntos. Trabalhei dobrado nos dias que se seguiram a minha promoção. Se faltava alguém no turno da tarde/ noite, não tinha problema: eu podia ficar e cobrir seu lugar. Se havia uma “brecha” na escala, eu podia fechá-la. E mil e um “se”. Eu sempre estava ali, empolgado, sentindo-me plenamente realizado.
 
            Tanto corri, pra cima e pra baixo, trabalhando, me dando inteiramente à livraria, que fui reconhecido inúmeras vezes com premiações individuais. Fui, em 2006, escolhido “o melhor funcionário do ano de 2005”, e como prêmio ganhei uma viagem para São Paulo, com tudo pago pela livraria, para visitar a Bienal do Livro daquele ano. Eu, que nunca viajei de avião...
 
            Foi tudo maravilhoso nos anos seguintes. Trabalhei demais. Recebi outros tantos prêmios por reconhecimento, e um dos maiores e mais significativos foi quanto alcancei a marca dos R$1.000.000,00 em vendas, alcançada no início de 2008, sendo o primeiro da livraria a chegar a tal cifra.
 
            Participei ativamente de todos os processos e mudanças da loja, como a migração para outra empresa (continuando a loja como franquia, agora da Saraiva), depois mudança de local da loja, passando a ocupar um outro espaço, mais amplo, imponente e bonito.
 
            Vi equipes se formarem e se desfazerem. Tive inúmeros e incontáveis companheiros de trabalhos, uns com quem me dei mais, outros menos, uns com quem tive o prazer de trabalhar mais, outros menos. Alessandra, Leandro, João, Andreza, Luíza, Adriano, Alessandro, Francisco, Leonardo, Juliane, Priscilla, Marcony, Antonio Potiguar, Ligiane, Ivson, Thiago(s), Stela, Madson, Teresa, Elinaldo, etc., etc. e etc. todos, primeiro, sob a batuta de Rose, depois, mais recentemente, sob direção da Saraiva, com Meridiana, André, Ricardo, Maurício e Jorge à frente. São tantas as pessoas, são tantos os nomes, que é impossível citar todos, e se eu fosse listar todos aqui, ficaria sentado lembrando cada um, cada história que me desperta mil e uma boas lembranças, e não iria acabar nunca de escrever este texto.
 
            Mas uma das coisas de que mais me orgulho nesses meus 9 anos de livraria não são nem tanto os números de vendas, os prêmios recebidos (lógico que os prêmios e reconhecimentos recebidos contam muito, sim, para o profissional), mas sim as amizades construídas. São amizades fortes, sólidas, sinceras e verdadeiras, construídas, algumas, ao longo de meses, outras tendo acontecido de supetão. Amizades com pessoas com quem trabalhei, sim, mas muitas outras tantas feitas com pessoas a quem não vendi livros, mas sim indiquei a leitura, com quem passei (e passo) longas horas a conversar sobre literatura, impressões de leitura de determinado livro ou sobre assuntos diversos. Conversas prazerosas, descontraídas, descompromissadas com tudo, comprometidas apenas com a amizade, com Maria do Carmo, Adriana, Nicolle, Monique, Ariette, Val, Graça, Marcos, Charles, Alberto e Virgínia, Dilermando, Laurence, Francimal, Maurício, Pedro, Rômulo, Adauto, Marcello, Jorge, Neusa, Vânia, Jéssica, etc., etc., etc. e, tal qual a lista dos grandes amigos com quem trabalhei, aqui, também, na dos amigos a quem quase que diariamente indico leituras, é infinito o número de nomes.
 
            São, já, nove anos, amigos. Parece meio clichê falar o “parece que foi ontem”, mas é bem assim mesmo que me sinto. Olhar para trás e ver tão nítidos os momentos, ouvir as palavras de incentivo e de amizade, os risos, as brincadeiras, parece que, de tão próximos, tendo acontecido, realmente, ontem, ou há, no máximo, algumas semanas.
 
            Reclamo, reclamo e reclamo, por vezes, de mil e uma coisas com as quais não concordo, mas, como costumo dizer, “reclamo porque me importo, porque quero crescer”, e se assim o faço, é por amar o que faço e por fazer o que amo.
 
            Não sei mais quantos anos eu terei de livraria pela frente. Às vezes acho que já dei o que tinha que dar, e por vezes tenho a absoluta certeza de que estou apenas começando, de que ainda tenho muito a fazer. Fato é que independente do tempo, o importante é saber que tudo que fiz, tudo que estou fazendo e do que ainda hei de fazer, está pautado no amor com que desempenho a minha função, seja como funcionário/ livreiro, seja como vendedor, mas, acima de tudo, sendo como amigo.
 
           
 
Obrigado, a todos, por tudo. Pelos nove anos que já se passaram e, desde já, agradecendo pelos longos e formidáveis anos que virão pela frente.