quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Emergência 911 no mundo moderno

Aquele tinha sido um dia tranquilo na central de ligações de emergência e a telefonista já começava a arrumar suas coisas quando o telefone tocou. Ela (a telefonista) sabia, de alguma forma,da gravidade da situação, e atendeu à ligação no segundo toque. Do outro lado da linha, um jovem desesperado.
            - Socorro... Socorro... eu preciso de ajuda. Ele não está respondendo e me parece morto. Preciso de ajuda, rápido.
            A telefonista, percebendo o desespero na voz do outro lado da linha, tenta acalmá-lo, ao mesmo tempo que procura descobrir o que se passou exatamente para acionar uma equipe de atendimento móvel de urgência.
            - Senhor, o que aconteceu? O senhor está com a vítima na sua frente?
            - Sim, sim... ele está aqui na minha frente e estou tentando reanimá-lo, mas ele não esboça qualquer reação. Acho que ele morreu.
            - O coração dele está batendo? O senhor consegue verificar isso, por favor?
            - Não. O coração dele está parado há quase dois minutos. Já tentei de tudo para reanimá-lo, mas foi tudo em vão. Cheguei até a tentar dar um choque nele, mas de nada adiantou.
            A situação então era realmente muito grave. A telefonista, desesperada, tem que agir rápido e acionar uma equipe. Verifica em seu monitor a localização das equipes para poder destacar a que esteja mais perto para fazer o atendimento e remoção da vítima.
            - Onde o senhor está? Pode me dar o seu endereço para eu poder destacar uma equipe?
            O outro, já chorando, fala o que aconteceu.
- Estava tudo tão bem... eu só sai dois minutos para ir beber água... quando voltei, que me sentei de frente a ele... ele me disse algo em forma de mensagem e de repente... apagou. Tentei reanimá-lo até com choque, realizei todos os procedimentos recomendados em situações como essas, de emergência, e nada... ele sequer abre os olhos. O coração dele parou... parou... e foi tudo tão de repente. Talvez se eu não tivesse saído de seu lado...
- Senhor, por favor, eu preciso de seu endereço para destacar uma equipe para ajudá-lo, rápido. Cada segundo conta numa hora dessas.
Ele, desesperado, verdadeiramente dopado por sua dor, não escuta o que a telefonista pediu.
- E ele não estava fazendo nada, nenhum esforço. Nós não estávamos jogando nem nada, pois já haviam me dito para não jogarmos, pois faria mal a ele. Ele só estava baixando umas coisas, quando de repente...
Ela já estava acostumada à situações como aquelas de emergência e mesmo com as palavras parecendo desconexas e sem sentido, foi agindo.
- Preciso, senhor, rápido, saber onde o senhor a vítima está para destacar uma equipe para ajudá-los – ela agora falou de forma brusca, quase gritando ao telefone, para chamar o outro à razão.
- Estou em minha casa...
- O endereço, senhor... Eu preciso do endereço para mandar a equipe do atendimento de urgência, ambulância e dos paramédicos.
- Eu preciso de um técnico, com urgência... ele está morto – e começou a chorar.
- Tem mais alguém com o senhor?
- Não. Estou sozinho, aqui no quarto, com ele morto, à minha frente. Estamos só nós dois.
- Tenho que mandar os paramédicos com urgência, senhor, pois ainda podemos salvá-lo. Ainda há tempo. Agora, por favor, me diga o endereço para eu mandar a equipe.
- Não é preciso toda uma equipe. Talvez só um bom técnico possa salvá-lo.
Silêncio dos dois lados da linha, que só era quebrado pelos soluços do jovem desesperado, necessitando tanto de ajuda.
A telefonista estava começando a ficar desesperada, apesar de todo o seu preparado para lidar em situações como aquela, por se sentir com as mãos atadas, impotente, por ver que há alguém precisando desesperadamente de ajuda, tendo ela o “poder” de destacar uma equipe móvel de urgência, mas sem conseguir extrair do desesperado do outro lado da linha a informação de para onde mandar a equipe que poderia salvar uma vida.
- Um técnico... um técnico... eu preciso de um técnico, com urgência. Só um bom técnico pode salvá-lo, pode ressuscitá-lo.
- Senhor, estou com equipes prontas, a postos, com paramédicos e enfermeiros prontos para ajudar seu amigo, mas para mandá-los, eu preciso saber onde o senhor está.
- Ele não é só meu amigo. É meu único amigo, aquele que me faz companhia todas as horas, até nas madrugadas...
E o tempo passando e a telefonista mais e mais desesperada, sem conseguir saber do maldito endereço...
- Ele estava tão bem há cinco minutos. Nunca teve problema algum. E de repente, apaga, sem mais nem menos, e agora está aqui, à minha frente, morto.
Pelo tempo que se passou, dada a gravidade da situação, a telefonista sabia que não havia mais nada a fazer. Àquela hora, muito provavelmente, a vítima já estava realmente morta e não havia qualquer possibilidade de ressurreição com eletrochoques, massagens cardíacas ou o que quer que fosse. Mas precisava, mesmo assim, tentar.
- Ele... eu já o tinha há tanto tempo... Ele nunca apresentou qualquer defeito, problema, e sempre esteve comigo nas horas mais difíceis, quando eu estava mais precisando, quando estava mais sozinho. E agora, o que vai ser de mim? O que vai ser de minha vida, agora, que ele está morto?
Já cansada, desesperada, a telefonista, sentindo como se tivesse deixado de salvar um alguém, resolve fazer uma última tentativa.
- Qual era o nome dele?
- Ele... Ele não tinha necessariamente um nome...
- Ainda tem algo que eu possa fazer, senhor?
- Um técnico, por favor. Mande um técnico. Talvez um técnico possa, ainda, salvá-lo, devolver-lhe a vida.
- O senhor, por acaso, quer dizer um médico?
- Não. Falo em técnico mesmo. Afinal de contas, o que um médico poderia fazer numa situação dessas.
- Talvez um medico...
- Não. Um médico não, um bom técnico, apenas, pode salvar o meu computador.
- O seu O QUÊ?
- O meu computador! Ora, o que mais poderia ser?!
A telefonista, respirando o mais devagar que podia, foi deixando o gancho telefone cair, cortando a linha.
- Alô? Alô? Você ainda está aí? Socorro... Eu preciso de ajuda. Meu computador está morto. Eu não consigo ligá-lo. Alô? ALÔ? Você ainda está aí? Você ainda está aí? Socorro... SOCORRO...

domingo, 20 de novembro de 2011

Solteiro em Trinta Dias - receitas de sucesso de um ex-otário

O autor consagrado pelos romances Amor de Amor de Yoni e O Maníaco do Circo (este, inclusive, tendo sido lançado na Bienal do Livro do Rio de Janeiro em 2009) acaba de lançar seu novo livro, Solteiro em trinta dias. Neste, segue o estilo comédia, muito bem-aceito depois de Saúde, Beleza, Prosperidade e Riqueza, uma paródia aos livros e axiomas de autoajuda, mas sempre com um “toque Leonardo Barros”, ou seja, sempre com a pitada de um erotismo. Leonardo Barros encontrou a medida exata do erótico em Solteiro em Trinta Dias, muito mais sutil e sugerido do que nos romances anteriores.
            A história é centrada em João Rickson, compositor de uma música só que foi (e continua sendo) um grande sucesso, tendo sido tema de novela, música de filme de Hollywood, tendo embalado romances,... João tem um casamento que, em sua concepção, é perfeito. Tem um grande baque quando sua adorável e perfeita esposa, Ilíada, o abandona, tendo jogado em sua cara o estigma de “fracassado”, por ele ter se acomodado durante tanto tempo (dez anos) sem nunca ter feito nada de proveitoso além de viver às custas dos direitos autorais de sua única música. Agora solteiro, João precisa reaprender a viver como tal, e terá na ajuda de Teseu, Gibson, Sócrates e Leocádio amigos inseparáveis, que acreditarão nele, abrirão seus olhos e ensinarão pra ele tudo que precisa saber na arte da sedução, mas antes de se preocupar com as “aulas de solteirice”, João terá mais com o que se preocupar, como, por exemplo, o que aconteceu naquela primeira noite primeira noite após ter sido abandonado por Ilíada, um mistério com muitas pistas e poucas respostas. João, com a ajuda de Sócrates, irá se debruçar sobre o mistério e ligará uma pista a outra a fim de descobrir a verdade. Seguirá e unirá as pistas, dois ovos, um pacote de fraldas e um frango congelado (!), conversará (ou tentará conversar) com o português da farmácia e seu emblemático vizinho com o intuito de ter, finalmente revelado, aquele enigma, cuja resposta será um “ponto chave” para que ele possa viver em paz e tranquilo e dar prosseguimento à sua vida.
            João Rickson descobre que seu casamento não era tão perfeito quanto imaginava, nem a sua esposa, Ilíada, tão santa e imaculada, mas nas situações de maior desespero e drama terá nos amigos pessoas com quem pode contar e que lhe ensinarão tudo que ele precisa sobre “a arte de viver”, e para isso ele terá todo o apoio e esquema de um projeto previamente definido, chamado “projeto Cavalgada” (!), com o qual João irá, finalmente, aprender o verdadeiro sentido (e valor) do que é ser solteiro nos dias de hoje...
            Livro bem construído e articulado, Solteiro em Trinta Dias é repleto de personagens bastante vivos e facilmente encontrados em nosso dia-a-dia, de humor, mistério e um toque de erotismo e sensualidade, características já marcantes (e esperadas) dos livros de Leonardo Barros.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

O momento é eterno, o “para sempre” sempre acaba

Tudo o que eu queria era esquecer. Simplesmente fechar os olhos e esquecer. Voltar atrás e fazer diferente, para que nada jamais tivesse acontecido, para que aquele dia não tivesse passado do que foi: somente um dia. Mas não. Aquele dia tinha que ser para sempre, pois assim nós o quisemos, pois assim nós o fizemos. Esquecemos que o para sempre às vezes é só um momento, só um dia; e às vezes o momento, o dia, pode ser eterno, e aquele nosso amor eterno de um dia se esgotou, se esvaiu por entre nossos dedos sem que o percebêssemos, pois quisemos prendê-lo, quisemos fazer dele eterno, e o eterno, naquele caso, era o momento, não mais que um momento...
            Se tivesse sido um momento, apenas, mas eterno, a imagem que ficaria para mim seria a de você vindo em minha direção, sorrindo – seu sorriso era tão lindo e radiante como a primavera de uma vida. Mas quisemos estender o momento, o dia, para fazê-lo durar para sempre, esquecendo que a vida não é para sempre, e a imagem que tenho, que guardo na memória, é a de você indo embora, me deixando aqui, a sós, tendo perdido o eterno que foi o nosso amor naquele instante, daquele dia.
            Não quero, no entanto, que volte atrás depois de eu ter visto as suas costas quando você partiu. Quero, no entanto, que me perdoe, não pelas ásperas palavras ditas, pois não podemos voltar atrás depois que as dizemos, simplesmente me perdoe, por favor, em nome daquilo que vivemos, do eterno amor de um dia que, em nosso egoísmo, o perdemos no inclemente dia a dia. Quero, também, que você saiba que eu te perdoo por inteiro, pois o erro não foi seu, mas sim nosso.
            Eu queria poder voltar no tempo e viver novamente aquele momento, somente aquele momento; sentir novamente o gosto de seu beijo e o calor de seu corpo e viver para sempre com aquele momento eterno na memória. Mas quando fecho os olhos e vejo que o nosso para sempre se tornou em um quase nada sem sentido algum, as lembranças me castigam e desejo que nada daquilo, nem o eterno do dia nem o para sempre do depois jamais tivesse acontecido.
            Eu queria poder viver e esquecer. Viver sempre que quisesse sorrir, e esquecer quando a dor me batesse no peito e me fizesse chorar à noite quando me lembro de suas costas quando você partiu, a última coisa que vi, e que ficou para na memória.

domingo, 6 de novembro de 2011

Uma História em Cinco Vozes

O Rio

            Nascido na mais alta montanha, brotando da velha, dura e áspera rocha, um milagre de vida. Corro caudaloso, descendo das maiores alturas, tendo que atravessar sinuosos caminhos, ora virando abruptamente para a direita, ora tendo de saltar do alto, formando uma cachoeira, para cair sobre o chão duro. Atravesso caminhos nunca antes visto por olhos humanos, de tão inóspitos que são, tendo que sentir em meu corpo pedras duras, que me ferem ao mesmo tempo em que me fortalece. Sou fonte de vida de inúmeros seres, sinto pulsar em meu corpo inúmeros corações. Minhas águas são cristalinas e frias. No sopé da montanha corro tranqüilo, muito devagar, quase não me movendo, é onde descanso antes de voltar a minha corrida desenfreada em direção ao mergulho na imensidão do mar azul.
            É manhã e o sol aparece encoberto por algumas nuvens, preguiçoso, ainda não de todo levantado no horizonte. Teima em não querer nascer para um novo dia. Sua luz ainda fraca, seu calor ainda não aquece, mas, mesmo assim, os pássaros cantam em seu louvor. Como eu gosto de pássaros! Sinto-me fascinado por suas belezas, por suas penas multicoloridas, por suas vozes que enchem o ar. Como invejo o céu por tê-los em seu seio, por senti-los em seu corpo, por fazê-los se sentir livres; e o sol, por ter, todas as manhãs, músicas cantadas em seu louvor, entoadas em suas vozes harmoniosas! Eu, por meu lado, tenho em meu corpo peixes, que os amo, por serem meus filhos, e os abrigo em meu âmago. Mas eles não cantam para mim, pois suas vozes não podem ser ouvidas.
            Ora corro, ora me arrasto, ora paro, aonde pessoas às vezes vêm e se deixam banhar por minhas águas frias e cristalinas.
Há um homem sentado sobre uma pedra à beira de onde descanso, sonolento à luz do sol desta manhã cinzenta, com as pernas suspensas no ar. Ele parece distraído, olhando para o céu, sentindo o sol encher seus olhos de luz, sentindo a brisa acariciar seu rosto e seus ouvidos inundados pelo canto dos pássaros. Lanço uma pequena onda em sua direção, que não o toca. Então formo outra, maior, que ao chegar perto dele, estico meus dedos para tocá-lo. Meu toque, frio, o assusta. Mas ele estica os pés, descalços, até me tocar. O toque de seus pés, quentes e macios, me afagando, me acalenta. Deixo que ele brinque com minhas águas, formando pequenas ondulações na superfície, balançando os pés para frente e para trás.
            Ele desce da pedra onde estava sentado e deixa as pernas submersas. Ali meus braços não alcançam mais do que a altura de seus joelhos, mas me sinto como se o abraçasse inteiramente. Eu o invejo por ele possuir duas pernas que podem levá-lo a qualquer lugar, que fazem dele um homem livre, enquanto eu, aqui, estou preso a esse meu corpo e meus olhos nunca verão outro lugar que não estes a que estou encarcerado. Sinto-me pequeno em minha finitude, comparado a esse homem livre.
            O homem se inclina em minha direção e com suas mãos em concha apanha um pouco de minhas águas para banhar seu rosto. Sinto sua pele quente e seu cheiro, seus pêlos eriçados pelo toque frio de meus dedos. Então ele se abaixa um pouco e olha diretamente para mim. Vejo a mim mesmo refletido em seus belos olhos azuis, tão límpidos, de um azul que me faz lembrar o céu nos dias de verão.

O Homem

            Acordo nas primeiras horas da manhã com o canto dos pássaros e um raio de sol, que passa pela fresta da janela de meu quarto, incidindo diretamente em meu rosto. Muito preguiçoso, me sento em minha cama e espero o sono se dissipar pouco a pouco até eu acordar por completo. Saio de casa em seguida e vou até o rio mais próximo, que corre vagaroso, no sopé da montanha, e lá me sento às suas margens numa pedra, a contemplar o céu azul, infinito, sobre minha cabeça e sinto meus ouvidos se encherem do som do canto dos pássaros. Assim me sinto em paz, com a suave e fria brisa matutina a acariciar meu rosto.
            Estou perdido em meus devaneios, sentindo uma paz de espírito me invadir, quando sinto roçar em meus pés algo frio, o que me assusta. Olho para baixo, depois para frente e me dou conta do rio de águas límpidas e cristalinas que se estende à minha frente. Deixo meus olhos se perderem a distância, fixando-se num ponto longínquo, onde o rio encontra o mar. Olho para o céu sobre minha cabeça, olho para o mar ao longe e o rio à minha frente e me dou conta de minha pequenez. Sinto-me insignificante, como um grão de areia numa enorme duna à beira mar, carregada, movimentando-se ao sabor do vento.
            Tiro minhas sandálias e salto dentro do rio, que é tão raso que mal alcança meus joelhos. O toque daquela água fria faz com que todos os pêlos de meu corpo se ericem. Para espantar o frio, resolvo lavar o rosto com aquela água fria, e mergulho minhas mãos e, embora muito da água escoe por entre meus dedos, trago um pouco para banhar minha face. Quando as águas se acalmam, vejo a minha face refletida naquelas águas límpidas. Fico a me contemplar por um curto tempo e acordo de meu devaneio quando ouço, ao longe, o barulho de um trovão anunciado uma tempestade que se aproxima. Saio apressado de dentro d’água e, caminhando descalço, sinto as pedras duras e afiadas como o gume de uma faca me ferindo os pés.
            Caminhava tão apressado que por muito pouco não vi o milagre da natureza que brotava daquele solo estéril, surgido por entre aquelas pedras ásperas e duras, projetando-se para o alto, em busca de sol, luz e ar. Me abaixo para melhor contemplar aquele minúsculo e tão belo ser, aquela tão delicada e majestosa flor. Muito delicadamente, aproximo meus dedos indelicados e grosseiros de suas diminutas pétalas, e sinto o toque de seda de seu corpo. Inclino-me um pouco mais a fim de aproximar meu nariz da flor e sentir o seu delicado e inebriante perfume. Inspiro profundamente duas ou três vezes antes de me reerguer. Fico de joelhos a contemplá-la. Como a invejo por ser tão bela, tão delicada e determinada, por conseguir surgir e sobreviver a tamanhas adversidades e nascer e viver naquele terreno tão hostil e pedregoso. Aproximo novamente minha mão da flor e seguro entre meus dedos seu delicado e fino caule. Muito suavemente, eu o seguro entre meus dedos para arrancá-la daquele chão. Seus pequenos espinhos me furam e algumas gotas de sangue já surgem por entre os dedos, mas suporto a dor, pois pretendo ter para mim aquela efêmera beleza, aquela vida, que passa tão rápido quanto um piscar de olhos.
            Ao colher aquela flor, a levo novamente até próximo a meu rosto para sentir novamente seu perfume. Sinto suas delicadas pétalas em contato com meus dedos. Ergo-me sobressaltado ao escutar outro trovão, dessa vez mais perto e olho para o céu e vejo as nuvens carregadas que se aproximam.

A Flor

            Minha semente foi deixada aqui, nesse solo estéril, cheio de pedras e duro, não sei por quem. A germinação foi difícil, mas consegui lançar raízes profundas nesse chão; raízes tão fortes que eu julgava que nada poderia me tirar daquele lugar. Mas eu não queria só germinar, eu queria nascer, ver a luz do sol, sentir o vento a me acariciar.
            Pouco a pouco fui crescendo e me levantando, e só ao chegar a superfície me dei conta do lugar em que tinha germinado. Era noite quando eu saí. Senti o vento frio, cortante, que me congelava e machucava. Olhei para o céu azul estrelado, mas meus olhos ainda pouco viam, pois minhas pétalas não estavam prontas, ainda, para serem abertas para verem e serem vistas e admiradas. Para me proteger, criei espinhos ao longo de todo o meu corpo.
            Numa manhã fria, quando o sol mal acabara de nascer, foi que desabrochei. E a partir daquele dia, todas as manhãs, logo que os primeiros raios de sol surgiam no horizonte, eu via os pássaros voando livremente pelo céu, cantando em louvor ao sol, ao nascimento de um novo dia. Alguns se aproximavam de mim e ficavam a me fitar, como que estranhando a minha presença ali, como se eu fosse um corpo estranho, uma rara beleza surgida naquele lugar. Logo outros pássaros se aproximavam, como se eu representasse, ali, um oásis no meio daquele deserto. Insetos também se aproximavam de mim, faziam com que o ar se enchesse de sua cantoria monocórdia, recolhiam meu pólen para depositá-lo em outra flor, como se esses tão diminutos seres vivos, tão frágeis e tão livres, tivessem a tarefa de levar o pouco que eu tinha para oferecer. Mas de quem eu mais gostava era dos beija-flores, tão belos, tão perfeitos em seu balé sincronizado a que dançavam em pleno ar. E seus beijos, tão inebriantes, faziam com que eu, em meu devaneio, desejasse me livrar de minhas raízes e voar junto com eles, tornar-me um beija-flor voar dançar livremente pele céu e beijar outras flores iguais a mim.
            Numa manhã em que o sol mal havia nascido no horizonte e nuvens encobriam o céu azul, um homem aproximou-se. Muito delicadamente, aproximou seus dedos de mim e acariciou minhas pétalas, inclinou seu rosto e deixou-o tão próximo ao meu que senti o seu cheiro. Podia sentir a maciez de sua pele, o calor de seu corpo. Ele ficou um tempo a contemplar-me. Estendeu sua mão para me tocar, segurando firmemente meu corpo. Meus espinhos, que eu julgava tão fortes, se mostraram tão frágeis e delicados quanto minhas pétalas. Lutei contra ele, mas minhas forças eram insuficientes para vencê-lo. Meus espinhos, apesar de frágeis, feriram a sua pele e seu sangue, rubro, maculou minhas pétalas brancas.
            Após arrancas minhas raízes, ele voltou a me fitar e me trouxe novamente para junto de si, a fim de sentir o meu cheiro. Agonizando, eu o odiei com todas as forças que ainda me restavam por sua mesquinhez, por ele me querer para si, por desejar ter a minha beleza, pois era apenas isso que seus olhos viam: beleza.
            Colocou-me junto a seu peito. Eu ouvia o seu coração bater acelerado e sentia o calor de seu corpo. Seus punhos, cerrados, me escondiam, não me deixavam ver o sol, e quando se abriram ele me entregava a outra pessoa, a uma mulher, que sorriu ao me ver. Meus espinhos feriram sua delicada mão, quando ele me entregou, mas ela não me soltou. Tocou minhas pétalas com as pontas dos dedos e sorriu. Seu sorriso era tão lindo quanto o amanhecer. Aproximou seu rosto do meu e me beijou. Seus lábios, seu beijo era tão delicado quanto o dos beija-flores. Ela era tão linda, tão pura e tão verdadeira que eu a invejei, que eu a quis para mim, queria lhe dar raízes para mantê-la para sempre comigo.

A Mulher

            Normalmente o céu, naquela época do ano, se mostrava de um azul tão profundo, tão belo, de nuvens tão brancas. No entanto, naquele dia ele mal se mostrava por entre as nuvens, tão carregadas, de um cinza escuro, feio. Estava começando a me preocupar, com meu amado que não chegava. Escutei ao longe o ribombar do primeiro trovão, que me fez estremecer por dentro, com medo da chuva que se avizinhava. Temi que ele não chegasse e eu fosse obrigada a ficar sozinha naquela casa, que ficava tão grande, quando ele não estava. Foi então que resolvi ir a seu encontro, pelo mesmo caminho que ele percorria todas as manhãs em que vinha se encontrar comigo. Mal andei alguns metros quando as primeiras gotas d’água começaram a cair do céu. A princípio tão finas e agradáveis que mal molhavam meu rosto, mas sim me acariciava a pele como o suave toque dos dedos de um amante.
Andei mais alguns metros sob aquela chuva que começava a precipitar com maior intensidade, e instintivamente comecei a apressar os passos e, sem que percebesse, logo estava correndo. Quando o vi, à distância, correndo, meio inclinado, com os punhos fechados sob o queixo, como que a proteger algo, abri meus braços para recebê-lo. Assim que ele olhou para frente e me viu, abriu um sorriso. Vê-lo sorrir era o mesmo que ver as nuvens que encobriam o céu se abrirem e o sol aparecer majestoso para iluminar o meu dia. Abraçamos-nos longamente e, ao nos afastarmos, ele me mostrou o que trazia consigo, protegendo com tanto cuidado da chuva: uma linda e delicada flor. Possuía uma haste longa, de um verde vívido, e lindas e delicadas pétalas brancas. Eu não resisti e a segurei em minhas mãos com tanta pressa que me esqueci de ter cuidado com seus espinhos, que me feriram a mão. Apesar da dor que sentia, eu não a larguei. A fascinação de segurar algo tão belo em minhas mãos compensava qualquer dor causada por qualquer ferimento.
            A flor era linda, como eu jamais havia visto. Pena que sua beleza fosse passageira, que sua vida durasse tão pouco. Mas, mesmo assim, eu me sentia fascinada e invejava as flores, pois elas, mesmo em suas vidas tão curtas, as viviam de forma tão intensa, brilhavam tanto em sua beleza que permaneciam vivas para sempre nas memórias daqueles que as contemplaram.
            A chuva continuava a cair a minha volta e sobre minha cabeça, os trovões continuavam a ribombar e os raios a cair, quando me dei conta de que estava inteiramente encharcada e que meu amado me esperava, pacientemente, a meu lado, para voltarmos ao aconchego do lar. Segurei sua mão e sorri. Começamos a correr juntos, quando tropecei e na queda acabei largando a flor que ele me presenteara. Não a encontrei, pois a chuva caía de forma tão intensa que mal se podia ver o que havia a frente. Ergui-me triste por ter deixado escapar aquela flor tão bela, e fui para casa, tendo, sobre minha cabeça, o céu que desabava, como se estivesse a chorar pela perda daquele ser vivo tão belo e delicado, como se chorasse por não mais poder contemplar aquela tão sublime e delicada beleza.

A Nuvem de Chuva

            Daqui de cima, do alto da montanha, para onde fui trazida pelos ventos, vejo o imenso vale a se descortinar a minha frente. Tão belo, com seu rio que nasce do coração da montanha e percorre longos e tortuosos caminhos até poder descansar, tranqüilo, na planície, até ter que reiniciar sua descida, rumo ao mergulho no mar azul, ao longe. Olho o sol, nascendo às minhas costas, e sinto seu calor a me aquecer, ouço as aves cantando em seu louvor. Desejo poder me aproximar dessas aves, tão belas e diminutas, senti-las voando ao meu redor, me tocando, brincando com meu corpo.
            O canto das aves me atrai, sempre belo, harmonioso, e resolvo me aproximar. Mas quando o faço, elas fogem, pois acabo lançando uma enorme e escura sombra aos meus pés, encobrindo a terra, roubando assim a luz do sol, e é em louvor dele que os pássaros cantam. Faz-se um silêncio sepulcral, e me sinto culpada por isso. Sinto-me triste, como jamais me senti. Tudo que eu mais queria era me aproximar dos pássaros, poder tocá-los e senti-los voando ao meu redor. Mas eles fogem de mim. Algumas lágrimas me vêm aos olhos, e não consigo suprimi-las, e elas acabam por se precipitar, indo cair lá embaixo. E quanto mais choro, mais os pássaros fogem de mim e maior é a minha dor. Quero fugir, ir embora, para longe, para o lugar mais longínquo onde os ventos possam me carregar, mas o enorme peso em meu peito, o ferimento causado pela decepção que sofri me impede que me reerga e retome o meu caminho.
            Estou tão baixa que quase posso tocar com meus dedos as copas das árvores mais altas, onde estão escondidos os pássaros a quem tanto amo. Mas eles estão tão assustados que mal se movem. Olham para o alto e não me vêem, pois só têm olhos para o sol, a quem procuram desesperadamente.
            Um pouco mais abaixo vejo uma mulher, que mesmo assustada, enfrenta-me, foge e me procura, e sinto todas as minhas lágrimas percorrendo seu corpo e sinto seu calor. Ela se sente feliz ao encontrar seu amado. Os dois se abraçam e se beijam. Ela recebe das mãos dele um presente, uma linda flor, de um branco que fora tão imaculado quando eu fui um dia, mas que está manchada, da mesma forma que estou.
            A mulher se sente feliz. E eu posso sentir isso, pois sou parte dela. Ela se deixa banhar por minhas lágrimas, por um tempo, antes de voltar para o abrigo de sua casa, como se a fugir e se esconder de mim.
            Em sua fuga, ela acaba deixando escapar por entre seus dedos a sua tão preciosa flor, que é carregada por minhas águas em direção ao rio.
            Sinto-me leve, com aquela flor em meus braços, indo em direção ao rio. Aquela flor é como um canto de louvor que entrego ao rio, como os pássaros entregam seus cantos ao sol.
            Eis que, em minha queda, tendo a flor em meus braços, antes de mergulhar por inteiro e me unir ao rio, olho para o alto e vejo surgir por entre as alvas nuvens que surgem no céu um arco-íris, tão lindo e multicolorido quanto são as penas dos pássaros que voam livres no céu azul depois que me entrego aos braços do rio.