domingo, 27 de março de 2011

Sorteio - Uma História em Cinco Vozes e Espelho Quebrado

 
Em comemoração aos dois anos do lançamento de Uma História em Cinco Vozes e a um de Espelho Quebrado, o Lugar das Palavras está fazendo um sorteio especial dos livros.
Serão três os contemplados. O primeiro irá ganhar um exemplar de cada dos livros autografados, o segundo ganha um de Uma História em Cinco Vozes e o terceiro um de Espelho Quebrado. Para participar é super simples: basta deixar um comentário nesta postagem dizendo qual o texto que você mais gostou e dizer qual o tipo de texto que mais gosta (se crônica, conto, “crítica literária” ou que outro tipo de texto que publiquei nesses mais de dois anos de blog.

Podem participar todos os interessados, de todos os cantos do mundo (tendo um endereço fixo para entrega, os livros vão chegar). Basta deixar seu comentário e torcer. O sorteio será realizado no dia 7 de abril e divulgado no blog.
Participe.

domingo, 20 de março de 2011

Conhecendo seu ídolo

Todos nós deveríamos ter, ao menos uma vez na vida, a oportunidade única de conhecer nossos ídolos, de estar perto deles, de olhar em seus olhos, de apertar sua mão, de dizer que o admiramos, etc, etc e etc. Isso faz um bem danado à alma, viver toda a expectativa, pegar fila, conhecer outros fãs, tão ou mais apaixonados que você, ver a fila andar, repassar o discurso que se passou semanas planejando e na hora, gaguejar e não conseguir falar nada além de um “te admiro muito” e um “muito obrigado” depois de receber o autógrafo.
            As semanas que antecedem o grande evento são longas como uma eternidade, os dias demoram a passar e você passa noites sem dormir direito, com medo de que, se pegar no sono, vai acabar dormindo demais e perdendo a oportunidade de conhecer o ídolo. É um tal de faz e refaz o discurso, muitas vezes ensaiando no banheiro, se olhando no espelho, procurando a palavra certa para quando chegar a hora. O dia de véspera então é um tormento, o maior e o mais feliz que um ser humano pode passar. E ao chegar ao local do evento (duas horas antes do início marcado para a chegada “do cara”), você vê que, apesar de tudo, de ter acordado cedo, de ter chegado bem antes da hora marcada, há uma enorme fila já formada e aí vem o medo de não dar tempo de chegar a sua vez, afinal de contas, seu ídolo tem uma agenda a cumprir, um horário rigoroso e excessivamente justo. Você fica na fila, olhando para um lado e para o outro, olhando a cada dois minutos para o relógio, com medo de não dar tempo de chegar perto dele. Vê algumas pessoas furando a fila, pois são amigos de algumas pessoas que estão à sua frente, mas você não reclama, afinal de contas, seus amigos também estão para chegar e você está guardando o lugar para eles.
            Você está lá, já cansado, com sede e aquela carga de adrenalina que percorria seu corpo no início do dia começa a baixar e o cansaço físico e mental começa a dar ameaças de que vai lhe abater, quando se ouve um barulho, uma verdadeira gritaria e você olha para o lado, para o local de onde está vindo aquele barulho. Seu coração quase para quando você o motivo da gritaria: seu ídolo acabou de chegar e você o viu. Sua garganta fica seca, seu coração ora acelera, ora ameaça parar. Seus amigos à essa hora já chegaram e você toma coragem e pede que eles guardem seu lugar, pois você pretende tentar chegar perto dele. Com as pernas tremendo, dando passos incertos, você caminha entre aquele mar de gente, que se acotovela e se espreme bem perto de onde ele está. Você ainda tem dúvidas se realmente é ele ou se é um outro alguém, parecido que está ali. Mas devido às proporções do evento, você começa a acreditar que ele está ali.
            As pessoas lhe dão passagem e você vê que algumas, visivelmente emocionadas, saem até trêmulas e outras até chorando (não se critica essas “lágrimas bestas”, como alguns insensíveis falam, pois são lágrimas sinceras, lágrimas de admiradores, lágrimas de fãs!). Você olha para o alto, procurando coragem e dizendo para si mesmo que “não vai dar vexame e chorar”. Olha para a frente, dá alguns passos, dessa vez mais decidido, e vê... ele está bem ali, a poucos metros de onde você está. Você tem vontade de chamá-lo, de fazer algo para chamar a atenção dele. Mas ele está muito ocupado, atendendo tantos fãs. Você volta para seu lugar na fila, dizendo que tudo aquilo já valeu. Tem vontade mesmo de voltar para casa, sem pegar o autógrafo, pois só em ter estado perto dele já valeu. Mas não, você fica, afinal de contas, você não passou tanto tempo aguardando aquele momento e justo quando ele chega, você dá para trás. Não. Você não vai embora. Você vai ficar.
            A fila anda lentamente e você olha para o relógio, pois começam a circular rumores de que só restam mais uns poucos minutos. “Será que você vai conseguir chegar até ele, lhe dirigir algumas palavras e apertar sua mão?”, é a grande dúvida que lhe vem à mente naquele momento. Mas você tem que ser otimista, e de tanto pensar positivo, a fila começa a andar. Agora se está há poucos metros dele e, de onde está, você pode vê-lo. Sua vez está chegando e você começa a suar frio e aquelas palavras, as mesmas que você vinha decorando á semanas, lhe fogem. Sua vez chega e você sente suas pernas pesadas e estende sua mão, que ele aperta e lhe presenteia com um sorriso. você gagueja e não consegue falar absolutamente nada daquilo que tinha planejado, mas que importância tem as palavras ali, naquele momento? Você o olha de perto, o toca, para ver se é real, se tudo aquilo está realmente acontecendo. Recebe seu autógrafo e se despede, feliz da vida. Você mais do que ganhou o dia, ganhou a semana, o mês, o ano, ...
            Agora você se sente um fã completo e se julga o maior fã do mundo (na verdade, você não “se julga”, por que você é). Pode ir para casa agora, satisfeito, feliz, por que foi tudo maravilhoso, foi tudo perfeito, por que tudo valeu a pena.

quarta-feira, 16 de março de 2011

Mapas do Acaso - 45 variações sobre um mesmo tema

Eu sou um daqueles tipos que podem ser rotulados de "fã incondicional" de Humberto Gessinger. Acompanho sua carreira desde antes de saber o que era o Engenheiros do Hawaii (antes mesmo de saber o que fazia um engenheiro e onde ficava o Hawaii!), pois, ainda muito pequeno, escutava as músicas (todas, de todos os LPs, que meu irmão tinha em casa e vivia escutando). O vício meio que passou de irmão mais velho para o mais novo.
Tenho o imenso orgulho de ostentar no rack de minha sala, para quem quiser ver (e invejar) a coleção completa dos CDs e DVDs de Humberto (seja como Engenheiros do Hawaii, Humberto Gessinger Trio ou Pouca Vogal), todos originais (nessa época em que é tão difícil se comprar um CD...).
As músicas de Gessinger marcaram uma geração e têm ultrapassado os tempos, sobrevivendo, se renovando eternamente, como um círculo, ou, como o próprio Gessinger disse em um de seus livros, "como uma serpente engolindo a própria cauda". Suas letras são inconfundíveis, repletas de figuras de linguagem, cheias de significados que muitas vezes só têm significados para os que se atrevem a tentar compreendê-lo.
Agora, Gessinger está incursionando em outras áreas, em uma outra arte, a literatura. Seu novo livro, Mapas do Acaso, tão magistralmente bem escrito quanto o anterior, Pra ser Sincero, e como todas as letras de suas músicas, tem a forma de um livro de crônicas, repleto de histórias e pensamentos. Livro para ser lido não como alguns dizem, "de um fôlego só", mas sim, ser lido bem devagar, para ser verdadeiramente bebido, palavra por palavra.
Mapas do Acaso não é um livro para ser necessariamente entendido, pois Gessinger é um alguém praticamente impossível de ser compreendido, mas sim apreciado, como uma boa música dos Engenheiros do Hawaii.

terça-feira, 15 de março de 2011

Já chega. Perdi minha paciência e esperança com as rádios.

‘Tá bom, ‘tá bom, ‘tá bom... dessa vez passaram dos limites. E para eu falar que passaram dos limites é por que mais do que simplesmente passaram dos limites, mas sim, que se chegou ao fundo do posso. Sempre fui (e ainda sou) uma pessoa muito compreensiva, sempre fui muito de respeitar tudo, e até as coisas de que não gosto, procuro ver algum valor, algum sentido, nem que esse valor e esse sentido só tenha sentido para uma pessoa. Também sou uma pessoa muitíssimo paciente (e quem me conhece sabe disso), e que para me tirar a paciência só sendo algo de excessivamente excepcional, algo que me deixa verdadeiramente irritado ou decepcionado.
            O que tem me tirado a paciência, tem mexido comigo a ponto de tirar minhas noites de sono, chama-se música. Sim, a música (ou falta de boa música) tem me tirado a paciência. É sério. Nunca falei tão sério nas últimas semanas (nos textos que tenho colocado neste blog) como estou falando agora. Está simplesmente impossível se escutar uma música boa de verdade (ou pelo menos agradável) hoje em dia em qualquer rádio. É sério. Tente para ver (ou para ouvir, como queira), para confirmar o que estou dizendo.
            Tudo bem que a maioria das rádios mais populares, digamos assim, nunca se caracterizou por ter uma programação lá muito seletiva, mas pelo menos era possível se escutar uma música boa entre todos aqueles hits do momento que eram pedidos por todos aqueles ouvintes insanos que tinham coragem de ligar pedindo uma música. Escutar rádio, às vezes, era um verdadeiro exercício de paciência. Ficar horas e horas com o rádio ligado, sendo obrigado a escutar músicas de que não se gostava só para, no final da programação, ouvir aquela música... nossa, ouvir aquela música tinha o mesmo efeito que ganhar uma medalha por bravura, perseverança, uma verdadeira prova de coragem! Hoje, escutar rádio é algo que podemos chamar de causa perdida. Não me venham com desculpas e falando coisas do tipo “não é bem assim”, porque é, sim, e todos sabemos muito bem disso!
            A música, as rádios, chegaram ao fundo do poço, o que é lamentável. Escutar rádio é como fazer um teste de insanidade (uma pessoa sã de verdade é incapaz de fazer tal teste), pois não se ouve nada que possua um verdadeiro valor musical. Só se ouvem (as pessoas, ouvintes, só pedem!) os hits (ridículos, diga-se de passagem), do momento. É um tal de “vou não, quero não, posso não, minha mulher não deixa não”, ou a sua réplica, que diz “vou sim, quero sim, posso sim, minha mulher não manda em mim” (!). Isso sem contar as “cerejas dos bolos” (são tantas cerejas em tantos bolos que precisamos rezar para aguentar tudo isso!), as “músicas” que foram as mais tocadas no carnaval (que finalmente acabou – ufa!) e têm os videoclipes mais vistos no youtube (alguém sabe de quem foi a ideia de se permitir que todo mundo pode fazer um clipe e postar no youtube? Se souber, me diga, que eu mato esse infeliz das costa oca, para falar no bom nordestinês!), uma tal de “Dança do Street Fighter” e uma “Daança da Liga da Justiça” (por favor, não vá ao youtube quando terminar de ler este texto para ver tais videoclipes, pelo bem de sua sanidade mental. Acredite em mim. Eu os vi e posso assegurar que eles não valem a perda de 3 preciosos minutos de seu dia).
            Para mim já chega. Já dei todas as oportunidades, já gastei toda a minha paciência (e olhe que sou muito paciente, mas até a minha paciência tem limite), e resolvi que a partir de hoje não vou mais ouvir rádio, não vou, nem sob pena de morte, sintonizar uma “rádio popular, líder de audiência”, até o fim de meus dias. E resolvi aposentar, de forma definitiva, o meu velho aparelho de som, e para não dar um fim indevido a ele, optei por usá-lo como um artigo de decoração, ou uma verdadeira peça de museu (como queiram chamá-lo).

domingo, 13 de março de 2011

Um brinde aos que morreram


O sol mal aparecia por entre as nuvens e não ventava naquela manhã; os galhos das árvores de frente à grande construção não se moviam e não se ouvia o canto dos pássaros. No alto, nas guaritas sob os altos muros da penitenciária os guardas, cansados daquela monotonia, nem atentaram àquele homem que passava pela primeira porta e caminhava, de cabeça baixa, pelo pátio. Usava roupas velhas, que já tinham perdido as cores há tempos, mas que estavam limpas e bem passadas, como se tivessem sido guardadas especialmente para aquele dia. Seus cabelos estavam grandes e sua barba à fazer. Mantinha o semblante sério e olhava sempre pra frente, sem nunca desviar os olhos. Carregava às suas costas apenas uma pequena bolsa, onde estavam guardados apenas uns poucos objetos e duas ou três mudas de roupas.
            Esse homem havia contado cada dia que passara confinado naquela prisão. Tinha plena consciência de sua culpa e cometera os delitos que cometera por convicção naquilo que acreditava, mas por uma infelicidade, no dia em que havia sido fixado para se deflagrar a revolução, um alguém os delatara e os policiais, muitos policiais, apareceram, distribuíram pancadas, socos, atiraram para o alto e até em direção à alguns do grupo revolucionário. O homem se lembrava bem do som dos tiros, como um eco em sua cabeça, lembrava do barulho do grito das mulheres, da agitação dos homens, da preocupação estampada na face de cada um de seus amigos. Vira gotas de suor escorrendo pela face de cada um dos que estavam a seu lado. Mas ele, mesmo sabendo do perigo que corria, não fugiu. Ficou ali, sozinho, um homem contra centenas de policiais. Fora preso, julgado e condenado. Recebera a opção de ter a pena abrandada, caso resolvesse cooperar com as autoridades dizendo os nomes dos que tinham arquitetado aquele golpe, frustrado graças a intervenção da polícia. Mas o homem, sério perante o juiz, manteve-se firme em sua resolução e nada falou. Recebeu com o peito estufado a pena que lhe cabia como insurreto. E por ter sido o único pego, por não ter colabora, fora lhe dada uma pena exemplar.
            Em nenhum momento o homem se arrependeu, em nenhum momento ele guardou rancor daqueles que estavam fora, em liberdade, enquanto ele estava ali, enclausurado naquela prisão de paredes tão rígidas e altas quanto uma montanha. Imaginava que eles, que fugiram no momento do aparecimento da polícia, dariam prosseguimentos aos sonhos de liberdade que todos cultivaram, imaginava que ao sair daquela prisão iria encontrar as coisas tal qual havia sonhado. E todas as noites, antes de dormir, olhava para o céu através da minúscula janela existente na sua cela e ficava a ruminar sobre o que estaria a acontecer lá fora, onde ele em breve estaria.
            E de tanto contar os dias, finalmente chegava o de sua liberdade. Atravessar aquele pátio vazio, poder olhar para frente, andar de cabeça erguida era pelo que ele tanto esperava. Quando se aproximava do grande portão da penitenciária, viu um dos guardas, que se dirigiu a ele e o cumprimentou com um gesto, mas não lhe dirigiu uma palavra. Fazia tanto tempo que ele não recebia uma palavra de cortesia que se esquecera como as receberia quando atravessasse aquele pesado portão de ferro.
            O guarda abria lentamente o portão, olhando para o homem, como se o quisesse manter ainda mais alguns míseros segundos dentro daquela prisão, mas o homem nada disse. Apenas observava o homem que tinha diante de si. Quando o portão foi aberto, o suficiente apenas para ele passar, o homem olhou para trás. Era a primeira vez que o fazia, como se para se despedir daquele lugar que não pretendia voltar nunca mais. Soltou o ar, como se não quisesse levar para fora nada daquele lugar, nem o ar. Deu um passo, que pareceu a ele tão grande, para fora. Ao ouvir, atrás de si, o portão se fechando foi que respirou fundo, uma, duas e três vezes, como se para sentir o cheiro de sua liberdade. Deixou cair no chão a bolsa e abriu os braços, como se para abraçar a própria liberdade, restituída. Abraçou a si próprio e olhou ao seu redor, para ver todo o mundo a sua volta. Seus olhos, desacostumados a claridade do mundo fora das paredes da prisão, demoraram a acostumar-se, mas tão logo o fizeram, a expressão de felicidade ao sair da prisão dera lugar a incredulidade, pois nada do que ele imaginava encontrar aparecia diante de si. Tudo continuava do mesmo jeito, as coisas no mesmo lugar, as pessoas, nas ruas, com os mesmos semblantes. Ele se perguntava o que fora feito enquanto ele estivera preso, o que fora feito dos planos de revolução.
            Abaixou-se lentamente e pegou sua bolsa. Resolvera ir procurar aqueles companheiros, tão seus queridos noutros tempos, que com certeza lhe dariam informações sobre o que tinha sido feito em sua ausência.
            Como um de seus grandes amigos do passado tinha um pequeno estabelecimento comercial, onde comprava e vendia livros e discos usados, resolveu ir até lá.
             A cada passo que dava, o homem percebia o quanto tudo tinha se modificado nesse tempo em que ficara confinado. As ruas avenidas estavam mais largas, havia mais carros nas ruas, os ônibus mais lotados e as pessoas mais apressadas, com semblantes carregados, cansados, como se relutassem em sair de casa para irem ao trabalho. O homem via isso em cada face, de cada homem e mulher por que cruzava.
            Não demorou muito para chegar até o lugar que desejava, que havia, surpreendentemente, mudado muito pouco. Salvo uma ou duas lojas, novas, tudo continuava do mesmo jeito que dez anos atrás. Caminhou pela rua tentando se lembrar de como eram as coisas, cada detalhe, do dia em que ali estivera pela última vez. Ele viu um ou dois rostos conhecidos, que cumprimentou, mas estava tão mudado em sua aparência que essas pessoas nem responderam, tomando-o como um louco ou como um alguém que os tivesse confundido com outra pessoa. Mas o homem, apesar da decepção de não ter sido reconhecido, não ficou triste, pois a alegria que sentia ante a possibilidade de reencontrar seu velho amigo de juventude era por demais intensa para que algo pudesse estragar aquele seu dia.
            Caminhou até o meio da rua e ficou parado durante um tempo, olhando para a livraria que tinha diante de si. Consultava o endereço em sua cabeça, para ver se por acaso tinha se enganado. Mas não. O endereço era justamente aquele. Reconhecia o pequeno bar ao lado, que continuava do mesmo jeito, com o mesmo dono atrás do balcão. Via, do outro lado, a pequena loja de objetos de decoração, que de tão velhos, ninguém entrava pra comprar nada. Só em olhar para a vitrine, ver os mesmos tipos de peças de tantos anos atrás, soube que ainda era administrada pela mesma pessoa. Mas a loja de seu amigo, como havia mudado!
            Ainda hesitou em dar o primeiro passo em direção a livraria, que não reconhecia mais, mas seus pés o levaram instintivamente àquele estabelecimento comercial.
            Tal não foi a sua surpresa quando viu muitas pessoas ali dentro trabalhando, andando pra cima e pra baixo, guardando livros, vendendo-os. Procurou com os olhos seu amigo, mas não o encontrou. Perguntou-se se ele ainda era o dono daquela suntuosa livraria, pois, antes, lembrava-se muito bem, seu amigo era pouco afeito a essas coisas comerciais. Tinha aquela pequena loja de livros e discos apenas para poder sobreviver, para suster suas necessidades básicas. Lembrava das noites em que dormira ao lado das estantes, quando voltava de uma noite de bebedeira; lembrava que seu amigo, muitas vezes, dormia no sótão, por ter sido despejado do apartamento em que morava por atraso no pagamento; lembrava-se, principalmente, do homem que muitas vezes emprestava os livros, que os distribuía às pessoas que, ávidas por conhecimento, não podiam comprá-los. Agora, no entanto, ele via que aquele lugar tão seu conhecido se transformara numa livraria, em que os livros tinham que ser vendidos, não mais emprestados ou dados àqueles que queriam lê-los.
            Acordou de seu devaneio quando um vendedor o abordou, perguntando se ele procurava por algum livro em especial, inspecionando-o de alto a baixo. O homem ficou sem saber o que responder. Teve vontade de perguntar pelo seu amigo, quando o viu abrir a porta e passar por ele, sem o sequer reconhecer. O rapaz, vendedor, percebeu o olhar do homem e o deixou só.
            Não havia palavras que descrevessem a surpresa do homem ao ver o amigo. Não havia mais nada no rosto daquele estranho que lembrasse o antigo jovem idealista, que lutava e pregava por um mundo melhor. Seu rosto estava bem barbeado, com cabelos cortados bem rentes. Usava roupas novas, de uma marca famosa, bem passadas.
            Enquanto este conversava com um conhecido, o homem caminhou até onde seu amigo se detivera para ver se aquilo que seus olhos lhe mostravam era verdade.
            Passava a mãos nos olhos, como se teimasse em não acreditar no que via. Mas era verdade. Aquele seu antigo amigo não era mais o mesmo, havia se vendido, havia se vendido à outras idéias.
            O homem ficou tanto tempo a fitar o seu amigo, que não conhecia mais vendo-o daquele jeito, que acabou por chamar a atenção dele. Apertou a mão do homem com quem conversava e se dirigiu a ele.
            - Posso lhe ajudar, amigo? Está procurando algum livro? – perguntou ele, fitando-o nos olhos.
            Os dois homens ficaram a se olhar por um curto espaço de tempo. Um procurava no outro traços, resquícios do idealista de outros tempos, que fora engolido, que estava mascarado, disfarçado por trás daquelas roupas novas e bonitas, mas não encontrava. O outro via apenas mais um louco que entrava em sua livraria, que importunava seus clientes com sua presença e nunca comprava nada.
            - Não, amigo. Não estou procurando nada – respondeu ele, com a voz embargada pelas lágrimas.
            Para ele, um homem que fora preso por que acreditava em um ideal, que lutara com todas as suas forças por aquilo em que acreditava, e por isso tivera sua liberdade tomada e sua voz calada, era doloroso ver no que suas palavras e seus gestos deram: em nada. Então tudo pelo qual lutara não valera nada, as pessoas que ficaram livres para lutar, enquanto ele estava confinado entre altos muros e grades, esqueceram as palavras ditas no passado, os motivos pelos quais lutaram, e se venderam.
            Olhou mais uma vez para o comerciante que tinha diante de si e deixou o ar escapar de seus pulmões.
            - Não encontrei o que procurava aqui, amigo. Obrigado – disse ele e se retirou, mas antes tocou no ombro do amigo.
            Aquele gesto, tão seu característico de expressar gratidão aos amigos, fora reconhecido pelo outro, que só se lembrou disso, do homem que fora preso, depois que este se retirara. Ainda correu para a rua, a fim de encontrá-lo, mas ele não estava mais lá. Já tinha ido embora, para onde, ele não sabia.
             O homem caminhou ao léu durante horas, tanto que perdeu a noção do tempo. Sentia-se confuso com tudo que tinha visto. Os sonhos que havia nutrido não tinham se realizado, as sementes que ajudara a plantar não germinaram e estavam mortas, secas, naquele solo estéril que é a realidade. Nunca havia se sentido tão decepcionado com uma pessoa como se sentia naquele momento, com seu amigo. Em sua cabeça passava um filme em câmera lenta, de todos os momentos, desde o dia em que se conheceram até o dia daquela frustrada revolução, em que fora preso e separado daqueles ao lado de quem lutara.
            Depois de muito andar, o homem, já cansado e com fome, resolveu entrar num restaurante. Naquela hora o estabelecimento estava lotado, de forma que ele só encontrou lugar numa mesa nos fundos, ao lado de uma em que um grupo discutia com uma certa exaltação. Mas o homem não atentou para o que se discutia, e tão logo se sentou fez seu pedido ao atendente.
            Enquanto esperava seu pedido, ele ficou de olho na televisão, que estava sintonizada no canal de um jornal local. E só nesse momento, quando o assunto abordado pela repórter era política, foi que o grupo que estava a seu lado se calou. Todos, tão vidrados que estavam, que um rapaz que veio trazer um pedido teve que falar várias vezes para um dos homens, até que este tirasse os olhos da televisão e atentasse para o que estava acontecendo ao seu redor.
            Logo uma mocinha veio trazer o pedido e ele começou a devorar sua comida. Fazia tanto tempo que ele não sabia o que era uma refeição além daquela servida na prisão, que aquela que ele comia agora, mesmo não sendo das melhores, lhe parecia um manjar divino. Comeu tudo tão rápido que o atendente estranhou quando foi chamado novamente pelo freguês de barba e cabelos grandes que pedia outro prato. Quando a mesma mocinha da outra vez trouxe o segundo prato e o homem preparava-se para começar a comer, acabou-se o telejornal e o grupo que estava na mesa ao lado reiniciou a discussão, dessa vez com os ânimos à flor da pele. Discutiam-se os assuntos políticos. E o homem parou de comer para ouvir com atenção aquilo que diziam.
            Um dos homens que estava naquela mesa era o mais apaixonado, que falava de forma mais calorosa sobre o assunto em questão. Esse homem estava justamente de costas ao que escutava atentamente a conversa. Ele gesticulava, falava alto a ponto de chamar a atenção de outras pessoas que estavam no restaurante.
            “Se um homem desse tivesse defendido a nossa causa, há alguns anos, com certeza o resultado teria sido outro”, pensava o ex-presidiário. Era uma pena que aquele que falava defendia um ponto de vista tão mesquinho, posicionando-se claramente a favor dos que estavam no poder. Os outros companheiros de mesa tentavam-no dissuadi-lo, mostrar o quanto ele estava enganado. Mas por mais que se fizesse, por mais que se falasse, nada o demovia. “É bonito ver esse homem falar, só é uma pena vê-lo defender algo que não vale a pena”, continuava a pensar aquele que tinha parado de comer só para ouvir no que aquela discussão daria.
            Sua curiosidade era tamanha para ver o rosto daquele que resolveu se virar, e só não se meteu na discussão por motivos de educação. Mas se mostrava claramente interessado, para todos os que estavam sentando àquela mesa, no que se falava.
Os homens que estavam à mesa viram, então, aquele que se interessava pela discussão e resolveram chama-lo para se aproximar, e foi só então que aquele que falava calou-se por alguns instantes, para que o forasteiro se sentisse à vontade. Os olhos deste arregalaram-se de tal maneira que o aquele ficou a lhe fitar, estranhando a atitude daquele homem de aparência tão peculiar. Os dois ficaram a se encarar por um curto espaço de tempo, como se se reconhecessem. Mas os olhos daquele que se calou só viam um homem estranho, que não lhe lembravam absolutamente ninguém, enquanto este via seu velho conhecido de outros tempo, um dos que lutaram a seu lado, que cultivavam o mesmo ideal, e que, no entanto, estava ali, totalmente mudado. Seu jeito, sua paixão continuava a mesma, mas e as idéias?! Onde estavam aquelas idéias que ele tinha no passado?! Ele também tinha se vendido às novas idéias, à nova realidade?
Aquele que reconheceu no outro seu velho amigo foi o primeiro a desviar os olhos. Em seu semblante passou-se uma sombra de abatimento, de decepção. Só teve ânimo para cumprimentar aquele que há pouco defendia com tanta convicção idéias que combatera, um dia, em seu passado com tanto ardor e saiu do restaurante, com cabeça baixa. E, ao passar pelo rapaz que lhe atendera, pagou sua conta e recebeu deste algumas moedas de troco, que apoiou em seu dedo polegar e a fez rodar, depois a jogando para o alto, dando-a como gorjeta àquele que havia lhe atendido tão bem. A esse gesto, a esse jeito de mexer com a moeda, o outro homem, que observava tudo, reconheceu seu velho amigo, que fora preso. E levantou-se, para se desculpar por não tê-lo reconhecido. Mas ao tentar passar pelas pessoas no restaurante acabou perdendo-o de vista.
O decepcionado homem andou por horas a fio até que seu corpo inteiro se cansasse e passasse a clamar por alguns instantes de descanso. Foi só então quando ele parou e sentou-se num banco de uma praça. Já era tarde e as pessoas começavam a se dirigir para suas casas após um longo e estafante dia de trabalho. O homem ficou a observar essas pessoas sem ser notado por nenhuma delas. Deixou que seu corpo descansasse, que sua alma se aliviasse, momentaneamente, do que tinha passado naquele dia, das decepções que tivera. Estava tão livre de quaisquer pensamentos que sequer notou a música que chegava a seus ouvidos. Era uma música belíssima, que ele já tinha ouvido outras vezes naquele dia, em diversas rádios. Imaginou que aquela se tratava da música do momento, e aquele que a cantava, o melhor artista de todos os tempos da última semana. Era uma música bonita, que tocava até o fundo da alma. E ele ficou a escutá-lala por um longo tempo, até que, como se algo estalasse em sua cabeça, lembrou-se daquela voz que cantava.
“Não pode ser”, pensou ele, levantando-se bruscamente e correndo em direção ao local de onde o som vinha. Chegou até um pequeno bar, que tinha algumas mesas e cadeiras espalhadas em sua frente. O som que chegava a seus ouvidos lhe fisgara, de forma que o homem o seguia tal qual um louco.
- Quem é esse que está cantando? – perguntou o homem ao dono do bar de onde o som provinha.
O dono do estabelecimento olhou para aquele que lhe fizera aquela pergunta como se perguntasse de que planeta ele vinha, para não saber quem estava cantando!
- Como você não sabe?! É aquele dali, do cartaz pregado à parede na frente do bar – respondeu ele.
O homem então correu até o local que o outro lhe indicara e viu com seus próprios olhos aquilo que seus ouvidos já tinham descoberto e que sua cabeça teimava em não acreditar: aquele que cantava a tão bela música, aclamado por todos, tão famoso, era um dos amigos de sua juventude. Ele não estranhou o fato dele ter sido reconhecido, pois era o único artista, o único talentoso daquele grupo de jovens idealista. O que estranhara era o fato dele estar tão famoso, o que era incompreensível era o fato dele ter sucumbido à fama.
Ficou a fitar a foto de seu amigo de outros tempos, mais um dos que tinham lhe decepcionado, escutando a sua voz tão conhecida, imaginando o que tinha mudado não só com aquele que se tornara famoso, mas com todos os outros, o que havia ocorrido para todos terem mudado, para todos terem se entregado daquela maneira, por motivos tão vis: dinheiro, poder e fama. Se perguntava onde estavam aqueles jovens, tão seus conhecidos, que lutaram juntos, que sonharam juntos e que se diziam tão fiéis aos seus princípios. Ele não sabia!
Saiu daquele bar cabisbaixo, absorto devido a tudo pelo que passara naquele dia.
Já era noite. Quando deu por si, percebeu que estava na praia, olhando para o mar, tendo sob sua cabeça um céu estrelado e uma lua cheia belíssima, como ele não via há anos, desde que fora encarcerado. Os únicos sons que chegavam a seus ouvidos eram das ondas, que quebravam bem próximo de onde ele estava e de um grupo de jovens que estavam sentados embaixo de um posto, em bancos de pedra. Falavam alto, gesticulavam, faziam uma verdadeira baderna, que o homem fuçou a se perguntar o que faziam aquela juventude daquele tempo. Tinha visto outros jovens desde que saíra da prisão e todos agiam da mesma maneira. Era uma juventude que não se preocupava com nada, que não tinham uma ideologia definida, composta de pessoas que não tinha uma personalidade definida, bem diferente dos de sua época.
Estava a observar tais jovens que sequer percebeu que um homem se aproximara sorrateiramente dele.
- O que há com essa juventude de hoje? – perguntou ele.
O homem então se virou, assustado, pois se julgava sozinho.
- Como?
- Essa juventude de hoje, o que há com ela? É bem diferente das pessoas de meu tempo e do seu. São jovens que não têm idéias, que possuem tudo e ao mesmo tempo não possuem nada, que se julgam felizes em sua ignorância, que não sabem nada do mundo que os cerca, que não têm que lutar por nada, por ninguém, e não fazem isso nem por si mesmos... – ao terminar de fazer o seu breve discurso, o recém-chegado soltou um suspiro tão alto e doloroso que parecia que seu peito tinha sido transpassado por um punhal.
O homem, ainda sentado, virou-se para observar mais uma vez aqueles que estavam próximo a ele, e não deixou de dar certa razão àquele que falara tudo aquilo. Lembrou-se dos tempos de sua juventude, de quando vinha para aquela mesma praia com os amigos e ficavam horas a conversar, a discutir, a sonhar... soltou, assim como o outro, um suspiro longo e profundo, por si mesmo e pelos amigos. Olhou para o alto mais uma vez e viu que algumas nuvens encobriam parcialmente a lua.
Olhou então para o outro, que se mantinha calado, observando o mar. Este, ao ver que estava sendo observado, sorriu para o outro. Tirou de dentro da bolsa que trazia uma garrafa de bebida e dois copos, encheu os dois e o ofereceu àquele que o observava.
- Um brinde? – perguntou o que oferecia a bebida.
- Um brinde a quê? Um brinde a quem?
- Um brinde aos caras que não mais existem, que foram seduzidos, que se venderam, que mudaram de lado, que, enfim, morreram, que só existem em nossas memórias.
Os dois então tocaram seus copos um no outro e beberam de um só trago a bebida, que desceu queimando em suas gargantas. Depois, em silêncio, os dois foram absorvidos, cada um por seus pensamentos.